Carta ao Filho: Estado de Minas*
P: Curioso observar que, a esta altura do desenvolvimento tecnológico, você use a “velha” carta como veículo de sua trama. Por que a opção?
R: A carta tradicionalmente serve para expressar um sentimento e, por isso, existiu uma literatura epistolar importante. Um dos grandes romances do século XVIII é Ligações perigosas de Chardelos de Laclos, que teve a feliz idéia de se valer da correspondência entre os personagens como recurso literário. O e-mail, diferentemente da carta, serve sobretudo para comunicar uma idéia. Sei bem que o ciberlover se vale dele para falar de amor e sexo, mas o texto do ciberlover está sujeito ao tempo rápido da comunicação. Escrevi um romance, O amante brasileiro, em que os personagens trocam e-mails e estes são raramente longos. O conteúdo do discurso amoroso não mudou, mas a forma de expressão sim.
P: Até que ponto as novas tecnologias têm contribuído para uma possível “nova” escrita?
R: A tecnologia impõe um estilo novo. Isso pode ser positivo, se considerarmos que o estilo novo implica maior clareza e requer a superação de formas que se tornaram arcaicas, implica criatividade. Passei a vida desaprendendo o meu estilo universitário para realizar o texto literário
P: Que espaço a sociedade contemporânea brasileira reservaria a esta mãe engajada, que não se poupa sequer de revelar ao filho a sua predileção sexual? Os preconceitos continuam aí, não é mesmo?
R: Não sei que espaço é reservado à mãe engajada no Brasil. Sei que a Carta ao filho teve uma grande repercussão na imprensa e foi muito lido. Escrevi o livro porque sou pela transparência e porque as mães são vítimas do tabú do silêncio. Tradicionalmente a boa mãe não fala de si para o filho, não tem este direito. O trabalho que eu fiz para a Folha de São Paulo e para a Veja, no consultório sentimental, me mostrou as consequencias trágicas do tabú. A título de exemplo, evoco a historia de uma das consulentes. Casou-se com um homem generoso e dedicado. Mas não se casou por amor. Ficaram 22 anos juntos e tiveram dois filhos. Depois dos 22 anos, ela assumiu a sua homossexualidade e se separou para viver com uma mulher linda. Saiu da cidade onde morava, dizendo que queria fazer mestrado. Ao saberem da verdade, os filhos passaram dois anos sem falar com ela. Hoje, eles a aceitam, mas eles pouco convivem. Quando a visitam, a companheira sai de casa. A consulente dizia ter ficado com uma culpa terrível e o desejo de morrer, acrescentando : « me sinto sem lugar ». Respondi que ela estava sem lugar na relação com os filhos e ia ficar, enquanto não dissesse a eles o quão impossível era para ela contar que amava uma mulher. Que ia ficar sem lugar enquanto não tivesse a coragem de expor o seu sofrimento… enquanto não sustentasse que uma homossexual tem o direito de ser mãe e avó, que a família pode se perpetuar com ela. Conclui dizendo que não é o homossexualismo que separa as pessoas, mas o preconceito.
A história da consulente mostra o quão importante é a transparência na relação entre a mãe e os fihos e eu escrevi Carta ao filho com o intuito de liberar as mães. Vale dizer ainda que ninguém escolhe a predileção sexual e não se pode condenar uma pessoa por esta ou aquela predileção. Gosto e sexo não se discutem.
P: Ser mãe ainda é “padecer no paraíso”?
R: Há algo de paradisíaco na relação com o filho durante a primeira infância. Por exemplo, o corpinho do bebê se moldando no corpo da mãe, o sentimento de onipotência que ela tem por ser a grande protetora. Mas, como ninguém ensina a ser mãe, ela está sujeita ao erro e pode sofrer com isso. Ademais, o papel de mãe implica, por um lado, estar disponível para cuidar e, por outro, aceitar a separação. Isso é difícil e eu, que tenho um filho único, padeci. Aprendi escrevendo o livro que o apego à função materna é prejudicial para a mãe e para o filho. Também foi para me desapegar que eu escrevi.
P: A medicina e a psicanálise contribuíram para torná-la uma mãe mais livre?
R: Mas não foram só a psicanálise. O meu filho nasceu depois de Woodstock e da revolução sexual dos anos setenta na qual eu me engajei. Sempre privilegiei a liberdade. Mas acho que também me tornei uma mãe mais livre por gostar do meu filho e querer uma relação verdadeira com ele, ou seja, em que um respeita a liberdade do outro. Como diz Octavio Paz, o amor é uma aposta extravagante na liberdade. O que sempre me move é esta aposta.
P: Imagina algum de seus livros em outra mídia, tipo cinema, internet etc e tal?
R: Mais de um livro meu foi adaptado para o teatro. Assim, Paixão de Lia e O Amante Brasileiro, encenado no Teatro Oficina. Houve também uma adaptação para o teatro de um capítulo de E o que é amor. Resultou na peça Paixão, que Nathália Timberg fez em quase todos os estados do Brasil. Estas adaptações me levaram a escrever diretamente para o teatro e eu faço isso com muito gosto. Adoraria ver O Papagaio e o Doutor , o livro que eu escrevi inspirada na minha análise com Lacan, no cinema. Quando o livro foi lançado, foi lindamente acolhido em Minas Gerais, onde me ofereceram um jantar com os docinhos que a personagem menciona no livro.
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*Entrevista não publicada Ailton Magioli, repórter do EM de BH.