BETTY MILAN TRANSFORMA DESEJO EM POLIFONIA
João Wady Cury *
A psicanalista Betty Milan está começando a ter reconhecimento como ficcionista. Com o lançamento de A paixão de Lia, a autora, que tem cinco livros de ensaios publicados e dois romances, vem recebendo elogios de críticos e escritores.
Em A paixão de Lia, Betty Milan transporta o leitor numa viagem pelos cinco desejos de uma personagem acalentada durante dois anos pela própria escritora em sessões de análise. Ter um amante, ter vários amantes, ser uma cortesã, ser lésbica e ter um filho.
Lia vive em Betty que, por sua vez, tem Lia dentro de si. Brincadeiras à la Ronald D. Laing à parte, a escritora-psicanalista admite utilizar a personagem para expressar os desejos que não têm como realizar na vida real.
“Poderia mesmo dizer que Lia sou eu, como Flaubert disse a respeito de Madame Bovary. Mas o que importa em um texto literário é alcançar, através do personagem, uma dimensão estética inexistente na realidade. Até certo ponto, eu escrevi A paixão de Lia por ter lido a literatura erótica francesa e querer algo radicalmente diferente, um sexo delicado que nada tivesse a ver com a perversão e sobretudo com o sadomasoquismo.”, diz a autora.
Para Hakira Osakabe, professor de Teoria Literária na Unicamp, Betty Milan não cria uma ficção comum: seu texto tem uma dicção mais poética, fato incomum na literatura brasileira.
Na literatura francesa, há uma tradição nessa linha com Marguerite Duras. Seus textos são quase para ser ditos. Existe também uma semelhança com a escritora portuguesa Filomena Cabral.
Com o mesmo entusiasmo recebeu A paixão de Lia o escritor Deonísio da Silva. Ele afirma que o livro tem um toque de modernidade.
“A paixão de Lia faz uma polifonia de vozes e traz um tipo de ficção cuja inventividade se sobrepõe à forma. A autora começa a entrar numa linhagem de escritores da qual fazem parte Lúcio Cardoso e Clarice Lispector.”, diz Deonísio.
A paixão de Lia é o nono livro de Betty Milan. A autora, que atualmente divide seu tempo entre São Paulo e Paris, já publicou, entre outros, O que é amor (1983), O sexophuro (1981), O Papagaio e o Doutor (1991). Em outubro próximo, Betty Milan será lançada como autora teatral. O interlúdio As vozes da paixão chegará aos palcos pelas mãos do diretor Wolf Maia.
Uma segunda incursão teatral de Betty Milan deve ocorrer no próximo ano com A paixão de Lia. O diretor José Celso Martinez Corrêa, do teatro Oficina, quer fazer uma montagem baseada no livro.
“Betty e eu temos uma grande cumplicidade, principalmente no que se refere à exaltação do sexual. Somos da época, os anos 60 e 70, em que havia grande tabu sobre esse tema, e não há nada mais violento do que o tabu sexual.”, afirma José Celso.
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* O Globo, Rio de Janeiro, 4 set. 1994. Livros, p. 6.