Baal VI

Em ‘Baal’, Betty Milan discute imigração e patrimônio

 

1 – Em Baal, você aborda questões como a imigração, a xenofobia, a disparidade de gênero, que são temas bastante discutidos nos últimos anos. O crescimento dessas discussões foi um dos motivadores para escrever essa obra? O que mais te motivou para escrever esse livro?

Não escrevi o romance para abordar as questões da atualidade, elas brotaram da história que eu narrei sobre Omar, um imigrante que largou do Oriente Médio no final do século XIX para se radicar no Brasil. Acredito que todos os imigrantes estão expostos à xenofobia e às dificuldades subjetivas do protagonista do romance como, por exemplo, a que diz respeito à  perda da língua materna.  O que me motivou a escrever foi um drama familiar por causa da herança – um drama frequente –  e o descaso pela memória . Depois de ter escrito o livro eu fui ao Líbano, visitei o vilarejo de onde os meus ancestrais sairam e me dei conta de que eles foram verdadeiros heróis porque a travessia foi dificílima. Me dei conta também de que se não fosse por eles eu talvez não existisse.

 

2 – Como você avalia a importância de tratar desses temas? E como a literatura pode ajudar nessas discussões?

  Os temas são recorrentes na atualidade. Mas a literatura permite focalizar o drama subjetivo dos imigrantes e foi por ele que eu me interessei no meu romance. Antes de escrever eu ouvi os meus ancestrais e li muitos relatos  num livro que se chama Histórias da Imigração.

 

3 – Quais foram suas inspirações para escrever Baal?

Me inspirei na história familiar e na história da cidade de São Paulo, que é a minha. Baal é o nome de um deus fenício, o deus da fertilidade, e é o nome que o patriarca da família dá ao seu palacete “uma joia do Oriente no Ocidente”, que deveria ter se tornado um memorial da imigração porque muitos imigrantes foram recebidos ali. Deveria, porém foi demolido como muitos outros da cidade de São Paulo que destrói continuamente a sua memória em nome da rentabilidade.

 

4 – O livro tem uma narrativa póstuma. Por que você optou por fazer isso?

Queria contar uma história que dura cem anos e queria um narrador em primeira pessoa. Um centenário dificilmente poderia contar enquanto um morto indignado faria isso de forma expressiva. Ademais o morto é o guardião da memória em várias civilizações.

 

5 – Como foi o processo de produção do livro? Quando você começou?

Sou descendente de imigrantes do lado paterno e materno, portanto vivi a maior parte da minha vida no Líbano do Brasil. Comecei a fazer a pesquisa antes mesmo de ter escrito o romance anterior, A Mãe Eterna, estudando a história do Oriente Médio e do Brasil e levei dois anos para escrever. No total foram quatro anos. Mas eu escrevi muitas versões antes de considerar que havia acertado. Foram vinte e cinco.

 

6 – Me conte um pouquinho da história que você conta em “Baal”…

Baal é uma história familiar. O patriarca e personagem principal, Omar,  narra um drama sempre atual: o da imigração.

No final do século XIX, quando seu melhor amigo é capturado por uma milícia para servir no exército inimigo, Omar é forçado a largar do seu país no Oriente Médio. Ao fugir da aldeia, coração partido, jura que  voltará buscar a família e a noiva.

Embarca para os trópicos, atravessa o oceano e começa a vida na mascatagem, como os conterrâneos que emigraram para o Novo Mundo. Valendo-se da sua força física e da inteligência, vence as dificuldades, torna-se um próspero atacadista e constrói um palácio, Baal, «uma jóia do Oriente no Ocidente», para sua filha única, Aixa, e a família dela.

Só que, depois da sua morte, os descendentes dilapidam a fortuna. O patriarca, que morreu sem poder descansar em paz por causa dos conflitos familiares, vê a guerra do país natal se repetir no país da imigração. Pervertidos pelo dinheiro e com medo do empobrecimento, os netos resolvem demolir Baal  afim de vender só o terreno e fazer com o palácio « o negócio mais rentável ». Tiram a mãe já idosa do lugar onde ela sempre morou e a transferem com a fiel servidora e o cachorro para um cubículo.

 Indignado com o comportamento dos netos, Omar os culpa por não se darem conta da sua luta e do alto custo do berço de ouro que lhes proporcionou. Associa a crueldade deles à vergonha das origens. Diz que, além de xenófobos, são  desmemoriados, « sucumbiram no fundo negro do esquecimento». Para se opor a isso, ele rememora a história.

A rememoração o  obriga a reconhecer os seus erros. Não se empenhou em transmitir o que aprendeu na travessia e, por preconceito em relação às mulheres, não formou a filha, para ser sua sucessora. Se valeu dela para animar Baal, o seu pequeno império tropical, e não para que  o palácio continuasse a existir depois da sua morte e se tornasse o que deveria ter sido, um memorial da imigração.

 

7 – Qual o significado do título do livro?

Como eu já disse, Baal é o nome do deus dos fenícios, que são os ancestrais dos libaneses. Mas existem dois tipos de Baal, o da fertilidade e o da destruição. Na história que Omar conta tanto existe uma superação quanto uma destruição. A questão do gênero também é importante. Depois de ter escrito, me dei conta, graças a um leitor,  de que há no romance uma história de feminicídio. O livro é complexo, trata de muitos temas da atualidade e há nele o ensinamento de que é preciso rememorar para não repetir. Só a rememoração pode estancar a guerra.

 

 

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Jornal Hoje em dia, Minas Gerais, 30 setembro 2019.