Baal: um mascate no palácio

Baal: um mascate no palácio

Betty Milan mescla o tom intimista de seus grandes romances com o documental da vida brasileira

 

Deonísio da Silva

 

O novo romance de Betty Milan toma por título uma das mais antigas divindades semitas, o deus Baal, adorado por fenícios, cartagineses, egípcios e cananeus, tendo rivalizado com Jeová antes de implantado o monoteísmo em Israel.

Baal estava acima de todos os deuses e tem o significado aproximado do Latim Dominus, Senhor, do mesmo étimo de domus, casa, esta equivalente ao grego oikos, por sua vez presente em oikoumenikos, ecumênico, designando toda a terra habitada.

Uma das estátuas mais antigas de Baal está no Louvre, data do século XIV a.C. e foi encontrada em território hoje pertencente à Síria. A Catedral Basílica de Saint Denis, em Paris,  pode ter sido originalmente um edifício erguido em homenagem a Baal por Clóvis I, o primeiro rei dos francos. O monoteísmo tem vínculos muitos fortes com a instauração das monarquias, que concentram o poder dos conselhos dos anciães das tribos numa única pessoa, o rei ou a rainha.

Evocador de fundas raízes culturais e históricas que a ninguém deixará indiferente, Baal sintetiza forças poderosas, que vão além da política e da religião e podem manifestar-se no amor e no ódio. Estes dois sentimentos, faces de uma mesma moeda, são o emblema da vida de Saad, o patriarca do romance e imigrante de ascendência árabe que enriquece no Brasil por meio de dedicação integral ao comércio de mercadorias vendidas em domicílio nos fins do século XIX.

Seu ofício de mercador é o seu Baal, nome que terá mais tarde o estabelecimento conhecido por palácio ou, como sabe a psicanalista paulistana Betty Milan, o prédio espelha um dos palacetes que marcaram a paisagem paulistana: “A avenida era um mosaico de palacetes de estilos diferentes — florentino, mourisco, neoclássico,  art déco… — e ficava no lugar que servia de passagem da boiada quando eu cheguei ao país” .

Não foram apenas os barões de café que ergueram palacetes ali. Os mascates marcaram nossa vida econômica até meados do século XX e passaram a ser assim chamados os caixeiros-viajantes porque a palavra mascate estava na língua portuguesa desde o século XVI, depois que libaneses cristãos ajudaram os portugueses a tomar a cidade de Maskat, no atual Omã, no Golfo Persa.

O narrador de Baal é o sensível Omar, capaz de comover-se com um pôr de sol, admirar estrelas, fauna e flora, que por estranhos caminhos do destino compra de Salma, viúva de Saad, seu patrão, o estabelecimento Bom e Barato, depois da tragédia que desaba sobre o proprietário, muito preso a preconceitos tribais que de nenhum modo teriam vez no Brasil.

“Alguns se tornaram mais ricos do que os reis, possuíam tantas moedas quanto os grãos de areia no deserto”, diz Omar de sua gente, “ e a divisa deles era ‘Melhor comerciar do que guerrear’” .

Omar é um Xerazade cujas histórias de amor e de ódio são narradas pelo viés do comércio, de gente inclusive, pois chega ao Brasil quando escravos são comercializados e tratados com crueldade inaudita pouco antes de serem substituídos pela mão de obra imigrante vinda sobretudo da Europa e do Oriente Médio.

O herói padroeiro e inspirador do narrador é Simbad, o Marujo, cujas viagens pelos Sete Mares o tradutor francês Antoine Galland foi buscar em contos árabes autônomos, mas inseriu nas “Mil e uma noites”, fazendo com que Xerazade narrasse as aventuras marítimas do fascinante personagem, entretanto ausentes do original. “Simbad podia se arriscar, porque era observador e capaz de improvisar uma saída”, diz Omar. E prossegue: “eu só entendi isso depois, lutando para conquistar meu lugar ao sol, ou melhor, à sombra   —   por ter emigrado para um país tropical ”.

O ponto de vista de Omar é póstumo e,  por isso,  ele pode observar até mesmo os pensamentos de Aixa, sua única filha, no enterro dele, um funeral “dos mais luxuosos”, “caixão de mogno de alças douradas” , em carruagem que parte do palácio Baal — este o nome da mansão que ele ergueu no Brasil —  em “cortejo de trezentas pessoas”.

Betty Milan certamente aproveita sua experiência de psicanalista, analisanda de Jacques Lacan, para achados espalhados no romance como pérolas: “O ouro da escuta…foi com ele que eu sobrevivi aqui”. A frase cabe perfeitamente no modo de viver do pai de Aixa, que escuta o cliente para poder diagnosticá-lo e atendê-lo: ele quer comprar, e Omar quer vender. Ou: ele não precisa comprar, mas Omar precisa vender.

Compara o cubículo em que o neto maldoso confinou a mãe à grade da hospedaria onde ele esteve para a triagem da imigração. “Além de idosa, Aixa é viúva. O meu neto a levou para um apartamento minúsculo e sombrio. Num quarto dorme ela, no outro, Nádia, que foi governanta do palácio e agora, por força das circunstâncias, é dama de companhia. A sala do apartamento é tão pequena que é preciso virar de lado para passar entre os móveis”.

Betty Milan fez um romance poderoso, de largas tramas, mostrando a evolução de um país que, aos trancos e barrancos,  avança na direção de evitar comportamentos como o de Henrique, neto de Omar: “Passou o sinal fechado e atropelou um menino. Sinal vermelho para um carro como o meu? … Há três dias, ele procura o advogado a fim de pagar a fiança e sair ”. A escritora não explicita, mas este fragmento preconiza os tempos que hoje vivemos com maiorais condenados pela primeira vez e enfim cumprindo suas penas na cadeia, sejam poderosos da política ou da economia.

A autora conseguiu mesclar em  “Baal” o tom intimista de seus grandes romances anteriores com o documental da vida brasileira, marcando a inserção de nova etnia cuja cultura tanto enriqueceu o Brasil. Esta obra evoca outras narrativas em direção semelhante, como “Gabriela Cravo e Canela”, de Jorge Amado;  “Dinheiro da estrada”, de Emil Farhat, “Nur na Escuridão”, de Salim Miguel; “Minha querida Beirute”, de Miguel Jorge; e “Carta aos loucos” , de Carlos Nejar, para citar referências desta importante vertente de nossas letras.

Os tiros disparados por Saad assinalam o desespero de quem não foi capaz de adaptar-se aos novos usos e costumes, aos novos tempos, mas anunciam também caminhos jamais esperados pelos beneficiários subsequentes, pois o destino não raro é encontrado naqueles caminhos tomados para evitá-lo.

 

Baal: um mascate no palácio
sobre: BAAL – um romance da imigração
O Globo
26 de junho de 2019