Baal, a barbárie da destruição da memória*
Manuel da Costa Pinto
Betty Milan tem uma obra extensa. Em sua produção recente, destacaria Consolação, romance marcante na história da literatura brasileira (e, em especial, na representação ficcional da cidade de São Paulo), e livros de feição autobiográfica como A mãe eterna e Carta ao filho – além de obras reunindo crônicas, entrevistas e peças de teatro. Mas Betty Milan é, sobretudo, uma romancista. Não há dúvida de que, entre todos os gêneros, é no romance que ela desenvolve sua maior potência literária.
Baal, editado pela Record, é um romance que se inscreve numa longa linhagem universal de relatos sobre a imigração. E a experiência da imigração recapitula, por meio de alguns indícios, elementos da memória familiar da autora, sem que isso seja explícito no livro. Não se trata de autoficção, essa tendência na literatura brasileira e contemporânea em que o escritor ficcionaliza parte de sua biografia, estabelecendo um jogo entre o que é verdade e o que é invenção, assimilando e explorando lapsos de memória e perspectivas parciais do vivido – lapsos e perspectivas que, no entanto, estarão bem presentes no novo romance de Betty Milan.
Por que digo que em Baal há “indícios” de que existe ali uma história familiar real? Há, de saída, algo de indefinível, que se percebe quase intuitivamente: a autenticidade daquilo que é relatado, a empatia afetiva com o universo cultural e íntimo das personagens. Aromas e sabores, vestimentas e tradições fazem perceber um elemento autobiográfico que nós sabemos, extratextualmente, pertencerem ao Líbano, país que está nas origens familiares da escritora.
E se o romance Baal se inscreve numa tradição narrativa sobre a imigração no Brasil – nesse sentido, poderíamos citar outros escritores brasileiros contemporâneos, como Milton Hatoum, manauara de origem também libanesa, ou Moacyr Scliar, gaúcho de origem judaica –, ele ainda se inscreve numa outra linhagem, mais restrita e excêntrica: a dos romances escritos por um “defunto autor”. Betty Milan, de alguma forma, “cria” essa linhagem, pois ilumina retrospectivamente os liames que há entre seus predecessores ilustres – em primeiro lugar, obviamente, Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, mas também O pirotécnico Zacarias, de Murilo Rubião. Com um protagonista que é, também ele, um defunto, Baal transforma o liame entre esses dois clássicos numa correia transmissora, mostrando as possibilidades expressivas desses narradores do além-túmulo – no caso específico de Betty Milan, para explorar as tensões entre memória e destruição.
Mas quem é Omar, o defunto narrador de Baal? Betty Milan joga com a imprecisão da memória, materializando-a numa não nomeação explícita de suas origens. Sabemos que Omar é um imigrante que vem para um país da Amrika (com a grafia árabe) – e, mais precisamente, da América do Sul. Ele vem de um país atravessado por tensões religiosas e étnicas, numa região dominada por um império – e aos poucos o leitor vai percebendo que se trata de algum lugar no Oriente Médio sob o domínio otomano. Mas Betty Milan nunca entrega o jogo.
Omar, portanto, parte do Oriente Médio, mais especificamente da região do Levante, rumo a Amrika, onde um imperador reinante promete condições de vida muito boas para os imigrantes. Não é difícil deduzir que país é esse. Afinal, só houve experiência monárquica relevante em dois países das Américas: no México, por breves e desastrados períodos, e no Brasil, com os longos reinados de D. Pedro I e D. Pedro II. Omar chega a um país escravocrata, onde os imigrantes são convidados a trabalhar em troca de salários que serão insuficientes para cobrir as despesas de moradia e alimentação contraídas com os próprios empregadores, endividando-se e ficando presos a opressivos contratos de trabalho – prática recorrente no Brasil à época, quando os imigrantes passavam a viver (guardadas as devidas proporções) na condição de semi-escravos.
O leitor de Baal vai tomando conhecimento desse processo ao longo da reconstituição da história de Omar, que só no quarto capítulo se revela como “defunto autor”. Quando o livro tem início, o centro da narrativa está em Aixa, filha única de Omar que, já em idade avançada, enfrenta vários problemas de saúde e de memória, e mora num antigo palacete chamado Baal, construído por seu pai.
No tempo presente da narrativa, os netos de Omar – Henrique, Francis e Lisa – estão em conflito por causa da vontade de dois deles (sobretudo o filho mais, velho Henrique) de vender e demolir o palacete para rentabilizá-lo. E, isso, apesar dos protestos da mãe, Aixa, que mantém um vínculo afetivo com o palacete, e de seu filho do meio Francis – que, nostálgico, cultiva suas raízes familiares e culturais, os vínculos da família com o palacete construído pelo patriarca. Basicamente, é nesta moldura narrativa que vai se desenvolver Baal – e que serve de ponto de partida para algumas reflexões.
O fato de Betty Milan ser psicanalista tem alguma influência sobre a narrativa? É sempre delicado (pois corre-se o risco de simplificações grosseiras) evocar a trajetória extra-literária do autor ao analisar suas obras literárias – especialmente quando se trata de uma psicanalista, o que nos induz a pensar que sua obra ficcional carregará, necessariamente, algum caráter psicológico, com análises interiores ou fluxos de consciência. Nada disso, porém, acontece na literatura de Betty Milan – e muito menos em Baal.
Todas as questões humanas, obviamente, são também questões psicanalíticas – mas a percepção psicanalítica da autora se faz mais presente na estrutura da narrativa e no desenho geral do discurso ficcional do que na psicologia das personagens. A imprecisão temporal e geográfica referida anteriormente, por exemplo, parece ser uma lacuna intencional, que mimetiza, ou assimila à matéria narrativa, as lacunas do próprio inconsciente inscritas em qualquer relato memorialístico. E há ainda outras questões importantes no livro que remetem ao saber psicanalítico – como as relações conflituosas com a figura paterna ou formas psicossociais que se projetam sobre comportamentos familiares repetitivos.
Quando começa o romance, o narrador conta como seu genro Dib, o marido de Aixa, elaborou um testamento que só privilegiava seus filhos homens. Isso gera grande revolta em Lisa, única filha de Aixa e neta de Omar. Ao longo do percurso narrativo, o leitor entende que a obsessão do narrador é menos a relação conflituosa que se estabeleceu entre Aixa e seus três filhos, com a exclusão testamentária imposta à neta, do que as formas de exclusão que ele mesmo, Omar, introduzira em sua relação com própria filha única. Ou seja, um dos tormentos de Omar, em sua narrativa de além-túmulo, foi a maneira como ele deu continuidade a uma espécie de corrente narrativa familiar que insiste em se repetir – sendo que a repetição, como ensina a clínica psicanalítica, encobre aquilo que foi recalcado por meio de lacunas discursivas que vão passando de geração em geração. E que, no romance dessa psicanalista de formação lacaniana, aparece refletida na estrutura complementar da relação de Omar com sua filha Aixa e desta com sua própria filha, Lisa, sempre com a posição paterna como figura da Lei que perpetua a exclusão feminina – numa espécie de “machocentrismo” conectado a uma outra teia de relações, agora socioculturais, compartilhada pelos patriarcalismos levantino e brasileiro.
Outro elemento singular de Baal é a transição muito sutil dos tempos da narrativa que Betty Milan imprime a sua escrita. Cada capítulo se inicia com uma etapa do percurso de Omar e de seu estabelecimento no Brasil, transitando em seguida, dentro do mesmo capítulo, para o relato de atos e atitudes nos quais o neto Henrique “repete” (mais uma vez, temos aqui a dinâmica da repetição) o avô, emulando seu caráter destrutivo ao empreender gestos predatórios em relação à memória familiar. De tal modo que o leitor tem, em quase todos os capítulos, uma espécie de trânsito temporal que conecta o passado de Omar ao tempo presente de seus descendentes, que por sua vez são uma caixa de ressonância dessa dinâmica psicofamiliar.
E essa transição temporal, ademais, é notável do ponto de vista estilístico, pois construída em pouquíssimos parágrafos. No capítulo 24, por exemplo, Omar é exposto a uma situação de maltrato em relação uma ama de leite negra, fica chocado com as práticas brutais da sociedade escravocrata brasileira e imediatamente associa essa cena de seu passado àquilo que narra na sequência: um entrecho no qual o neto Henrique comete abuso sexual contra uma moça virgem, guiado por uma espécie de sadismo viril. Assim, e sem que o romance jamais resvale no sociologismo, Omar conecta a virilidade agressiva do brasileiro contemporâneo à brutalidade contra o corpo feminino que vivenciou no passado, às relações escravocratas em seus elementos mais tenebrosos e marcantes na história do imaginário brasileiro, com impacto duradouro sobre as relações afetivas e sociais, sexuais e conjugais.
A escravidão não é o centro da narrativa, mas está onipresente em Baal como um subtexto. Pois Betty Milan toca em outras questões sociais delicadas, que são decorrentes da cicatriz escravocrata. Cria, por exemplo, uma antiga governanta do palacete, Nádia, que depois se torna dama de companhia da Aixa e que é uma espécie de reconfiguração contemporânea do agregado machadiano, essa personagem muito conhecida no Brasil, que circula à volta de uma família como uma espécie de satélite, por não ter lugar social próprio, vivendo do favor numa estrutura em que a exploração do trabalho reproduz formas de servidão. A figura do agregado, como ensinou Roberto Schwarz , integra a “redução estrutural” (expressão de Antonio Candido) do Brasil do século XIX operada pela ficção de Machado de Assis: “De um lado, os proprietários e a propriedade (que tem forma mercantil); do outro, os homens livres, sem propriedade e sem salário – o trabalho cabe aos escravos – que só através do favor dos primeiros participam da riqueza social”.
Esse desenho, todavia, perdura após a abolição da escravidão, como o demonstra Baal, romance que tem um pé em cada momento (antes e depois da abolição). Trata-se de uma sociedade que passa do regime escravocrata para o regime do trabalho livre, mas não consegue transformar nem a massa explorada nem os acólitos do explorador numa classe trabalhadora com autonomia e representatividade. O agregado, portanto, gravita em torno do poder, vive na dependência, só subsiste pelas concessões de quem detém o poder.
Assim, vários elementos da literatura e da história do Brasil – como, de um lado, o defunto autor/narrador (com seu caráter lutuoso) e, de outro, a escravidão, o patriarcalismo, a exclusão e a violência (real ou simbólica) contra a mulher – tornam Baal uma espécie de meditação sobre a barbárie brasileira, tendo por mote a destruição da memória familiar, uma forma de esquecimento que não cessa de se inscrever de modo violento, ou como irrupção violenta daquilo que foi recalcado.
“Por causa do esquecimento, a história não para de se repetir, a crueldade… Só a rememoração pode evitar tanta repetição, estancar o mal.” Esta frase está no final do primeiro capítulo e anuncia, de certa maneira, o tema que vai percorrer o romance. O imperativo categórico de rememorar para evitar o Mal é algo que está presente tanto na perspectiva do Omar-narrador, em relação às tensões sociais das quais fugiu no Oriente Médio, quanto na relação microscópica que ele mantém com seus filhos: trata-se, em Baal, da necessidade de evitar a destruição da memória familiar para que uma história mais ampla de exclusão, injustiça e opressão não se torne crônica, repetitiva.
Vale lembrar, finalmente, que o título Baal remete a um deus da mitologia fenícia, deus da fertilidade – mas também da destruição. É da destruição do palacete Baal que trata o livro – e o palacete encarna a memória. Assim, a memória tem inoculada dentro de si mesma o germe de sua destruição, concentrando metaforicamente, no nome Baal, toda a tensão que percorre esse romance notável de Betty Milan.
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* Este texto reproduz a apresentação feita pelo jornalista e crítico literário Manuel da Costa Pinto durante lançamento do romance Baal, no auditório da Livraria da Vila da Alameda Lorena em São Paulo, no dia 18 de junho de 2019.