Cinema e Psicanálise: Ato de violência
São Paulo, 1980
O quarto, a cama, a mulher morta, o homem ao lado, que se levanta, carrega e deposita o fardo no banheiro, esquarteja o corpo e deixa o apartamento. Depois, o amigo do homem, que entra para topar numa cabeça, nos pedaços do corpo esquartejado, agir imediatamente denunciando o amigo à polícia.
Dessa sequência, resulta a história do homem, Antônio, e a trama do filme Ato de violência(1), cujo mérito é deixar em aberto a questão que ele apresenta, isto é, a das razões do crime, oferecendo-se assim como um quebra-cabeça que obriga a meditar sobre a violência. Sem dar elementos para saber por que Antônio se torna criminoso, o filme põe a nu o mecanismo que o obriga a sê-lo repetidamente.
Vejamos isso através da história. Antônio é preso, aparece no pau de arara e dele nada ouvimos sobre o crime. Só fala o delegado no ato de ditar ao escrivão o texto do depoimento e, segundo o que diz, Antônio teria esganado a mulher por ela recusar a prática de cópula anal, procedendo assim para encarnar no corpo da vítima a sua própria revolta. Ou seja, Antônio é preso, torturado, sua palavra é cassada e o delegado forja o motivo objetivo do crime, afastando a possibilidade de ignorar o motivo e consequentemente de vir a saber a verdade. À polícia só interessa caracterizar o preso como criminoso, justificar através disso a violência de recusar a ele outra identidade, violência que se consuma na cena seguinte. Nela, Antônio entra na Casa de Detenção para aí tirar a roupa e vestir o uniforme, ser obrigado como os outros a cortar o cabelo, despojar-se de todas as suas marcas anteriores e esquecer de si no presídio.
Isso feito, vemos o carcereiro alinhar os presos e o encarregado do presídio proferir uma lição de mora: “Se você agir como moleque será tratado como moleque. É do nosso interesse botar você na rua. Se você se ajudar será ajudado”. Uma fala que o filme interpreta por um corte abrupto mostrando Antônio diante da cela, da miséria que será a realidade da sua existência. A verdade da lição nos é agora revelada na palavra de ordem da cadeia: “Salve-se quem puder”.
Para se salvar, Antônio recorre a Tânia, ex-empregada e esposa futura, que comparece à visita, se compromete e contrata o advogado. Inútil. Segundo os autos do inquérito policial, o assassinato ocorrera por um motivo torpe, e é o texto dos autos que prevalecerá no julgamento. Nada do que o incriminado então diz é levado em conta porque o escrito invalida a fala.
Detenhamo-nos entretanto no diálogo entre o juiz e o réu. Indagado sobre o acorrido, este responde que tinha tomado dois drinques, ficado confuso. O réu sabia onde estava? No apartamento, acrescentando que, ao despertar, percebeu que estava nu e a mulher morta. Percebeu como? Pela imobilidade dela, as marcas no pescoço, e Antônio diz o que poderia ser decisivo se o juiz tivesse ouvidos, isto é, que sentiu ter sido o causador, embora não se lembrasse de ter esganado a mulher.
Mas o juiz é surdo e a fala não é escutada. Tudo nela indica um estado de inconsciência no momento do crime e a consequente inimputabilidade do réu. Antônio não é louco, mas não poderia ser responsabilizado por um ato que lhe escapou à consciência. Isso não impede que ele seja condenado a vinte anos de prisão e a impotência do advogado diante dos fatos agora se torna clara. Interpelado por Tânia, ele diz que pior teria sido invocar a insanidade, condenar Antônio ao manicômio, ao lugar de onde vivo preso algum saía.
Ou seja, numa primeira instância, a polícia forja o motivo. Numa segunda instância, só reconhecendo a verdade no que está escrito, o juiz legitima a mentira e o advogado, por sua vez, a endossa, visto que a verdade – a inconsciência – implicaria a morte do réu. Já aqui o futuro de Antônio está traçado, ele é injustamente condenado à cadeia e ainda a se repetir no crime, pois não havendo como admitir a possibilidade da loucura, não há como preveni-la. Antônio não pode deixar de ser um criminoso, porque a Justiça assassina a verdade e o manicômio assassina os inimputáveis. O réu é vítima de um duplo assassinato.
Julgado e condenado, Antônio irá então cumprir a sua pena na Penitenciária Masculina do Estado. Aí é submetido a um teste de Rorschach e nós o vemos diante da psicóloga, que entrega as pranchas, acerta o cronômetro, incita-o a dizer o que vê. Uma outra situação em que a verdade não tem como se dizer. Antônio acaso poderia entregá-la a quem se aproxima dele para julgá-lo? Diagnosticar sua periculosidade e interferir na pena, seja para abreviá-la ou para deixar que ela se cumpra integralmente. Antônio está diante da psicóloga como diante do juiz. Sua história a nenhum dos dois interessa. O medo da mentira leva-os a recusar a única fonte possível de verdade, o discurso. Tivessem eles ouvidos, saberiam que a mentira tem pernas curtas, isto é, que não há nada mais difícil do que uma mentira que se sustente.
Seja como for, o mérito do filme é justamente o de mostrar a cumplicidade entre a Justiça, a Psicologia e a Psiquiatria, tornando assim suspeitos esses saberes, que no caso de Antônio resultam num laudo favorável, mas o obrigam a persistir na ignorância do que o determinou. Numa das visitas, ele próprio diz a Tânia insistindo em que ninguém havia conseguido explicar o porquê do seu ato.
Apesar da imaturidade atestada pelo laudo, o comportamento exemplar do preso levará o juiz a comutar sua pena para 14 anos, transferindo-o para uma colônia agrícola em regime de prisão semiaberto. Assistimos então ao casamento de Antônio e Tânia, simples, singelo, uma promessa de vida.
Na colônia, outro exame psicológico, agora uma entrevista. O psicólogo quer saber como era Antônio no colégio, nos estudos, na infância. A mãe doente havia sido internada e o filho criado por um empregado do pai que o espancava. Respostas em que tudo é negativo, sem que se possa entretanto concluir o que quer que seja.
O psicólogo recorre a Tânia. Nova entrevista:
“— De que forma Antônio se comporta?
— Honesto, trabalhador.
— De que forma se comporta depois do casamento?
— Comigo, sempre o mesmo.
— Nenhum sinal de agressividade?
— Às vezes, fica nervoso.
— Por quê?
— Não gosta de ser contrariado.
(Até aqui, nada. Mas, nas relações íntimas, como será o homem que esganou a vítima por ela ter recusado a cópula anal?)
— Há alguma anomalia, Antônio é normal?
(Uma pergunta que, surpreendendo Tânia, a leva primeiro a responder interrogando)
— Normal?
(Depois, pela tangente)
— Ele é muito carinhoso.”
A estranheza de Tânia denuncia o exame psicológico que procura avaliar a realidade através de um critério estranho a ela, o da normalidade. Nada mais irredutível à norma do que a sexualidade de cada um, mas o psicólogo precisa negar essa evidência.
Vejamos por que. Sua meta é avaliar a periculosidade do examinado. Para tanto, precisaria saber o motivo do crime e ainda se existe a possibilidade de uma repetição, ou seja, precisaria escutar. Mas como o delegado e o juiz, é exatamente isso que o psicólogo evita. Não convida Antônio a dizer, mas a responder. Impõe-lhe a fala para impedir que ele se diga através dela. Interroga para interditar a palavra e a verdade de se manifestar. Assim, só lhe resta julgar. E ainda que o critério da normalidade seja inadequado, é dele que o psicólogo se vale, descartando a palavra e tomando como referência a conduta de Antônio, porque esta permite objetivá-lo, considerá-lo a distância, e aquela não.
Como o delegado e o juiz, o psicólogo não autoriza o preso a falar, cassa-lhe a palavra e desse modo o desumaniza. A sua violência é a mesma do processo a que desde o início é submetido o preso, processo que o descaracteriza, recusa-lhe a singularidade banindo-o do mundo humano.
O fato é que o resultado do laudo é favorável. Nem psicopata nem psicótico, um neurótico sem periculosidade, e Antônio é posto em liberdade condicional.
Logo então o encontro com os familiares, um almoço festivo, os votos de um recomeço. Mas o emprego prometido e conseguido pelo pai de Tânia pouco dura. Só o tempo da empresa receber a folha corrida, saber do passado criminoso, condenar novamente Antônio despedindo-o. Sem emprego e sem a possibilidade de encontrar outro, ele agora está livre para ser marginalizado. Recomeça a beber e se separa de Tânia. Assim, sem trabalho, sem casa, de bar em bar, Antônio acaba reincidindo no crime: esgana brutalmente uma outra mulher, Teresa.
Capturado, ele é matéria para a imprensa, que imediatamente se desloca para entrevistá-lo. Inúmeros microfones, os repórteres insistindo em saber por que Antônio havia esganado outra mulher, ouvindo-o responder que bem gostaria de saber, comentar que se a razão estivesse no fraco por mulheres, por bebida ou na infância problemática, não sobraria mulher para o gasto, concluindo enfim que, não tendo se integrado na cadeia e não podendo se adaptar à sociedade, devia ir para o manicômio.
Aqui termina o filme, na cena em que pela terceira vez Antônio nos fala da inconsciência do ato, da inocência do crime e do lugar a que está destinado: o manicômio, onde será suprimido. Antônio nos fala da inexistência de uma saída para o criminoso que é vítima da sua inconsciência, da impossibilidade de deixar de se repetir num sistema em que é preciso negar a loucura para não morrer, onde inimputabilidade significa morte.
O ato de violência de Antônio serve antes para denunciar a violência dos vários atos subsequentes: torturar, assassinar a verdade, legitimar e endossar a mentira, violar a identidade subjetiva e cassar a palavra ao preso, submetendo-o a uma existência indigna.
Antônio é a história do nosso compromisso, o mesmo de que fala Léon Bloy, para quem o assassino é a flor e nós somos a planta.
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São Paulo, 1980.
(1) O filme Ato de violência tem direção de Eduardo Escorel, roteiro de Eduardo Escorel e Roberto Machado. No elenco, Nuno Leal Maia, Renato Consorte, Selma Egrei. Drama/Suspense, 1980, 1h52.