As paixões brasileiras
Prefeitura de Paris, 2005
Por ser neta de imigrantes libaneses, durante muito tempo me perguntei: Quem sou eu? Depois de longa estada na França – de 1974 a 1978 —, voltando ao Brasil, passei a me perguntar: Quem sou eu que sou brasileira?
Para responder, fui escutar os carnavalescos. Entrevistei-os e levei as respostas a sério. Essa maneira de proceder – herdada da minha formação psicanalítica – era nova, pois o discurso deles era menosprezado no país. A intelligentsia via no Carnaval um evento folclórico, a imprensa o noticiava sem levar a sério o discurso do carnavalesco, e a retransmissão dos desfiles das escolas não passava de uma exibição pornográfica.
Através da minha escuta, percebi que tudo no desfile tem sentido e que a riqueza dele não decorre da quantidade de plumas, pedras ou paetês, mas da multiplicidade de representações, ou seja, da criatividade dos autores e atores. Aprendi que existe no Brasil o que já em 1980 Joãozinho Trinta chamava de “cultura do brincar” e que há dois Brasis, o oficial, que se quer branco, e o outro, que se reconhece no melting pot das culturas e faz pensar numa Améfrica Ladina, pela presença maciça da África negra.
O herói do Brasil mestiço é Macunaíma, que Mário de Andrade apresentava assim: “No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retindo e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera que a índia tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram Macunaíma”(1).
Para Macunaíma, acima de tudo está o brincar, e a importância do brincar na cultura brasileira é tal que ele pode ser equiparado ao fairplay inglês, ao droit francês e ao honor espanhol, três termos que Salvador de Madariaga considerava intraduzíveis.
A cultura macunaímica do brincar não se manifesta através de dogmas como a cultura oficial, mas de um estilo que se renova incessantemente e faz a ambivalência vigorar. O travesti carnavalesco é um bom exemplo disso. Serve-se do masculino para ridicularizar o feminino, realiza o desejo de ser mulher sendo homem. Em outros termos, faz a sátira da alternativa implícita no ou se é homem ou se é mulher.
O brincar é tão indiferente ao princípio da não contradição quanto ao tempo cronológico. Assim, o Colosso de Rodes, o Jardim Suspenso da Babilônia e as Pirâmides do Egito podem coexistir num mesmo desfile de escola de samba.
O Carnaval assimila todas as culturas e confere um sentido novo às suas representações. Para ele tudo é de todos e, nesse comércio, ele nos mostra facetas do mundo que nós até então ignorávamos.
Espontaneamente sacrílega, a cultura do brincar só respeita desrespeitando as outras culturas, que ela brincando dessacraliza. O que faz a sua originalidade é a devoração das alteridades e por isso Oswald Andrade escreveu: “Só me interesso pelo que não é meu, é a lei do homem, a lei da antropofagia”(2).
A escuta dos carnavalescos inspirou Os bastidores do Carnaval e também O que é amor? Porque me levou a perceber que também o amor no Brasil é moldado pelo brincar. Noutras palavras, nós não temos o gosto da paixão do amor, porque a ela opomos a paixão do brincar.
Por não nos reconhecermos no mito infeliz de Tristão e Isolda, que desejam a morte. O sentimento amoroso entre nós não é trágico. O amor alegre é o que nós temos de melhor. A grande difusão da música popular brasileira – que frequentemente canta este amor – é uma boa prova disso.
Depois de ter escrito sobre a festa e o sentimento amoroso, me detive no futebol e escrevi, em 1985, O país da bola. Me perguntei neste ensaio o que faz do football o futebol e dos nossos jogadores figuras lendárias. Tentei explicar por que o futebol brasileiro é particularmente criativo, produz jogadores capazes de fazer o impossível acontecer, fazer nascer a surpresa de que precisamos para superar a nostalgia da infância, idade em que nós todo dia estávamos às voltas com novidades surpreendentes. Pude verificar que o estilo do nosso jogo é o de quem aprende a improvisar desde a infância. Que o luxo da cultura brasileira é o da imaginação, como diz Joãozinho Trinta.
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Prefeitura de Paris, 2005.
(1) Andrade, Mario de. Macunaíma. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.
(2) Andrade, Oswald de. Manifesto antropófago. Revista de Antropofagia, São Paulo, ano 1, n. 1, maio 1928.