Amor e erotismo, Corpo e escrita

Amor e erotismo, Corpo e escrita

 

Cláudio Willer(1)

A reunião em um só volume de três títulos de Betty Milan – O sexophuro, A paixão de Lia e O amante brasileiro – vem mostrar que, sendo obras autônomas, formalmente distintas, que contam histórias bem diferentes, podem ser lidas como uma só narrativa: não-linear e fragmentária, mas com um fio condutor. Partilham a qualidade já observado por Haquira Osakabe a propósito de O amante brasileiro: “a leveza e musicalidade mais próxima da poesia”. Corroboram a afirmação desse estudioso, de que “o amor, suas armadilhas, seus desdobramentos, na verdade são o tema mais constante dessa autora”. Mas não se trata apenas de amor, nessas três narrativas e no restante da obra de Betty Milan, porém de erotismo; e das complexas relações entre palavra e corpo; especialmente, a palavra transfigurada pela poesia, e o corpo transformado em linguagem pela ritualização do erotismo.

A comparação dessas narrativas mostra as particularidades de cada uma; e também sincronias, pontos de contato, relações de continuidade. Basta o leitor imaginar que as três protagonistas, apresentadas na terceira pessoa, são a mesma, e algo de O sexophuro parecerá antecipar A paixão de Lia e O amante brasileiro. Esses relatos, por sua vez, refletem sobre questões já apresentadas em O sexophuro, retomando-as: etapas da mesma aventura intelectual e existencial.

Lidas desse modo, as narrativas passam a ter algo de permutacional. Constituem, em seu conjunto, um painel que pode ser melhor entendido pensando-se no I Ching, o arcaico jogo chinês das mutações (do século VI a.C, ou antes – há uma dúvida insolúvel: se o I Ching é uma expressão do taoísmo, ou se essa doutrina deriva da visão de mundo que norteia esse oráculo). No I Ching, os trigramas, conjuntos de três linhas, são de duas categorias. Aqueles com predomínio de linhas fechadas, que correspondem a números ímpares, são yang, “ativos”, “masculinos”, solares e diurnos; e aqueles com predomínio de linhas abertas, que correspondem a números pares são yin, “passivos”, “femininos”, lunares e noturnos. Suas combinações, reunindo pares de trigramas, possibilitam 64 hexagramas; e cada um deles conta uma história, assim revelando algo através de permutas e combinações. O que importa: sob a regência do pensamento analógico, cada uma dessas possibilidades implica seu contrário e remete a ele. Por isso, na série apresentada nesse livro das mutações, cada hexagrama é seguido por seu oposto, com a distribuição inversa das linhas, e cada uma das histórias supõe seu contrário: um enredo feliz, auspicioso, terminará em desastre; outro, desastroso, terminará de modo feliz; perdas resultarão em ganhos, derrotas em vitórias e vice-versa. O último dos hexagramas, de número 64, é o símbolo, não de um final, mas de um recomeço. É, portanto, caso particular do que já foi denominado de “teoria de contrários”, da qual uma das expressões é a afirmação de William Blake em O Casamento do Céu e do Inferno: “Não há progresso sem Contrários. Atração e Repulsão, Razão e Energia, Amor e Ódio são necessários à existência Humana”.

Lendo as três obras desse modo, como série e jogo de antinomias, O sexophuro passa a valer não apenas em si, mas como prólogo e antecipação. Trata do vazio, da lacuna, da ausência durante “um convívio harmonioso, em que o amor era o da paz e o sexo semanal, o corpo na ordem do dever, da inexistência, da falha e da falta, com o homem de pedra forjado num “silêncio omisso”; um homem em quem “ela via agora uma muralha trincada, nunca a baía serena que tanto imaginara”. Relato de uma perda e de um estado de inação, começa onde narrativas terminam: o trecho inicial parece um epílogo, pois fala do que acabou e não é mais, sem ter chegado a ser plenamente. O sexo é equiparado à alienação e associado à morte, à completa anulação: “Nesse corpo ele durante anos se afundou e ela se alienou. Tanto que para se livrar da sua paixão chegou a imaginar suicídios vários, enforcar-se no quintal, cortar as artérias do pé, uma fantasia que a tomava de supetão entre um amor e outro”. O mundo do erótico, do gozo como fim em si, está longe. Entrevisto de relance, pode estar em cenas de um passado distante, diametralmente opostas à vida da protagonista: na zona, na “rua das putas”. É o “cenário onde todo gozo se podia e não havia interdição”; e que será descortinado em outro registro, em A paixão de Lia.

Mas – este é o final e a conclusão de O sexophuro – a palavra também é um corpo, é vida: “urgência daquele dito que jorrava, à escuta de si, sob o comando imperativo da palavra”. Há uma linguagem matricial, que precede e engendra a realidade: “a língua materna, ocasião do gozo primeiro, o de ser entre os outros um, o dizer resgatando o ser do não. Por isso, O sexophuro termina em um paradoxo: com sua protagonista anunciando que vai escrever, como se já não o houvesse feito nas páginas precedentes. Substituindo a infidelidade conjugal, a fidelidade à escrita, para assim recuperar ou refazer magicamente “o passado na dispersão das cenas, corrimãos do dito onde a palavra impossível outrora deslizava”. É como se anunciasse que, em busca dessa “palavra de outrora”, irá criar A paixão de Lia e O amante brasileiro – e também O papagaio e o doutor, O clarão, Paris não acaba nunca, Quando Paris cintila, Fale com ela, Consolação… Das narrativas de Betty Milan, O papagaio e o doutor, escrita cerca de dez anos depois de O sexophuro, termina com sinal trocado, mão de direção invertida, com uma proclamação em favor de Eros, uma afirmação do corpo. Não há contradição: as duas obras registram uma dinâmica, o movimento entre essas duas esferas contrastantes, do corpóreo e do simbólico.

Declarado em O sexophuro, o propósito de escrever cumpre-se em A paixão de Lia, obra mais extensa, com uma escrita menos condensada e contraída. Tudo o que não acontece em O sexophuro passa a acontecer em A paixão de Lia. Uma narrativa é o reverso da outra: hexagramas complementares. Livro da expansão da palavra e também do erotismo: com um amante oriental, em um bordel com um cliente chinês, como oficiante de um rito em Lesbos, com um companheiro com quem terá um filho. Principalmente, é o livro do refazer-se, ao recuperar a dimensão lúdica e a disponibilidade da adolescência. Encontrar o outro, os outros, é reencontrar-se; por isso, tantos personagens-anagrama, mutações do mesmo nome: Lia, Ali, Li, Laio, Dali, Lídia, reflexos multiplicados no bordel que é um jogo de espelhos. Amantes múltiplos, variações do mesmo. Um deles é Li, parte de Lia: signo e metonímia (troca do todo pela parte). O primeiro amante, Ali, seu avesso, assim como a imagem no espelho inverte quem é refletido, em uma relação equivalente ao sonho: “O amante, quando? O que, no meu sonho, Ali se chama”. O sonho desconhece a contradição: “Uma mesma voz melíflua para dizer sim ou até não” – ou sim e não, a conjuntiva no lugar da disjuntiva: analogia, ruptura do princípio da identidade e não-contradição, base do pensar discursivo.

Mas, entre o um e o outro, entre este e aquele, as sincronias e antinomias, separações e aproximações, o que existe? Muita coisa, pois este é o livro da criação ou recriação do mundo: “Quem prescinde do faz de conta? Nem os personagens, nem os homens e nem os deuses”. Se o erótico e o verbal são distintos, separados, então A paixão de Lia quer promover seu encontro. Vicente Huidobro já havia afirmado que o poeta é um pequeno deus, como o demiurgo platônico; para o poeta chileno, assim como para Betty Milan, a poesia instaura realidades, cria mundos. Por isso, A paixão de Lia é tão impregnado de referências literárias. Relê e reinterpreta a literatura erótica: freqüentar um bordel é percorrer o castelo de orgias de Histoire d’O, livro escrito sob o ponto de vista de uma mulher. Recorre à mediação fundamental, a palavra poética: ir a Lesbos é lembrar a origem da lírica; e também as Chansons de Bilitis de Pierre Louys e o Baudelaire mais lírico e passional (inicialmente, o poeta havia escolhido Les lesbiennes, as lésbicas, como título do que viria a ser As flores do mal – e Lesbos, um dos poemas censurados na edição de 1857, celebra o amor livre).

Assim, Betty Milan dá razão a Octavio Paz, quando este afirma, em A outra voz, que “a relação da poesia com a linguagem é semelhante à do erotismo com a sexualidade”. Para o filho que um dia terá– nisso também invertendo O sexophuro, no qual perde um filho –, Lia contará as peripécias do Dom Quixote e as histórias de As mil e uma noites. Mas há uma diferença com relação a esse corpus literário: desta vez é uma mulher que está no centro: é narradora, protagonista e autora; é sujeito integral.

A paixão de Lia, sendo poética, também é musical: na poesia arcaica, a lira de Orfeu era indispensável. Lia ouve “o alaúde, a flauta ou o violão, algum instrumento que a transporta para um sítio longínquo, sonhado”. Menciona Billie Holiday, Edith Piaf e o tango– música que possibilita a mais hierática das danças, para acentuar que o erotismo, é um ritual ou cerimonial: “Ser como a egípcia antiga que se apresentava com uma ânfora de barro numa bandeja de cobre”.

Em O amante brasileiro, a música volta à cena, em um momento decisivo: aquele da revelação de “quando e onde meu desejo se tornou imperativo”; novamente o tango significará que o amor é um ritual. E os amantes, o francês e a brasileira, também ouvem Gilberto Gil no Olympia, simbolizando um encontro de pessoas e de culturas: “não fosse a música, eu não teria me entregado a este amor que faz a vida valer”.

A paixão de Lia é sobre erotismo; e também sobre o restante: o mundo, o corpo e a palavra, a poesia. É o descerrar-se do possível, dos avanços rumo ao desconhecido, “ao Fugitivo, onde tomando o desconhecido pelo homem que eu espero eu terei a ilusão de ser amada”. Assim como O amante brasileiro, é escrita da aproximação, da conjunção em vez da disjunção. E da metamorfose: um pode ser outro, e pode ser todos: Lia, Dali, Laio, Li são “os semblantes e os corpos e a imersão no espaço sideral” – unidades que se integram, rompendo limites, anulando o tempo: “o meu tempo é então o do sêmen escorrido na virilha”. Transgridem a separação entre os sexos em Lesbos, e a própria vida no episódio do suicida, pois Lia quer superar uma antinomia fundamental, entre vida e morte, para “poder morrer na hora em que eu determinar” (antecipando a defesa do direito de dar fim à vida com que inicia o  romance Consolação) para alcançar a liberdade e ultrapassar a contingência, o próprio tempo: “não quer barganha com o Tempo e não se ajoelha em nenhum altar confirmado”.

Em O sexophuro, a protagonista anuncia que vai falar, vai escrever. Em A paixão de Lia, termina narrando, como se narrar equivalesse a amar, e o amor existisse quando se consegue falar, dizer algo. O amante brasileiro resulta dessa equivalência ou relação indispensável entre amar e dizer. O mais extenso dos livros da série; o mais verbal, conta uma história na seqüência temporal, com início, meio e fim. Em sua peculiar estrutura de romance epistolar, gênero anacrônico, porém aqui modernizado através do meio digital, relata o que dizem seus protagonistas, Clara e Sébastien. É escrita sobre escritas, sobre aquilo que os personagens – os principais e também os secundários, os interlocutores e consulentes de Clara – contam. O que se passa entre Sébastien e Clara articula-se a um sem-número de outras histórias. Além da presença de Claude, “uma mulher que não escutava nada, nem mesmo o que ela dizia”, contraponto a tudo o que os amantes têm a dizer-se e a ouvir/ler um do outro, há os e-mails dos leitores de Clara: jornalista, recebe e responde mensagens através de uma seção que lembra Miss Lonelyhearts de Nathanael West, mas sem fraude (no livro de West, é um homem que se faz passar por conselheira sentimental). A ficção antecipa a atuação de Betty Milan na seção Fale com ela na Revista da Folha do jornal Folha de S. Paulo (que originou o livro com o mesmo título) e subsequentemente em Consultório Sentimental na revista Veja, em www.veja.com <http://www.veja.com> : passagens de O amante brasileiro foram escritas como se a autora adivinhasse as mensagens que viria a receber.

Amor realizado é amor escrito; daí O amante brasileiro ser mais literário ainda que A paixão de Lia, no modo como introduz outros autores. Inicia-se com referências a Romeu e Julieta, segue com Henry Miller perambulando por uma Paris convertida em mapa erótico, passa por citações de Octavio Paz em A dupla chama, seu ensaio sobre amor e erotismo: “o amor é uma aposta extravagante na liberdade”, frase que poderia ser uma epígrafe de A paixão de Lia. Seus protagonistas sentem-se retratados ou antecipados pela escrita. Percorrem relatos sobre o amor ao longo dos tempos, desde Orfeu, passando por Tristão e Isolda, Romeu e Julieta, pelos trovadores provençais, pelo mito negativo de Don Juan, tecendo os fios de uma história que irá chegar até eles.

Se, em A paixão de Lia, os personagens, metamorfoses do mesmo, são anagramas ou têm nomes intercambiáveis, em O amante brasileiro mudam de nome. Rebatizam-se logo no início: Clara também é Eva, e Sébastien é Adão. E o francês amante é um amante brasileiro. Sendo quem é, pode ser outro, através do “incêndio de que você foi a causa”, que faz pessoas irem além de si e transforma o mundo: “quando você aparece, na casa ou na rua, você suspende a realidade”. E o tempo: “o tempo então já não é o mesmo / porque eu tenho a ilusão de que sou eterna / de que já não estou sujeita à arbitrariedade da vida e da morte”.

Assim, onde em A paixão de Lia a protagonista se desdobra em alteregos e interlocutores imaginários, em O amante brasileiro os protagonistas afirmam que são reais, “pois eu já não posso te tomar por outro”. Os demais personagens também são “reais” – evidentemente, são invenções ficcionais, porém autônomos, e não metamorfoses da protagonista: Lola, Laís, Verônica, Roberta, Paulo, Lilu. E, percebe-se hoje, acabam por assemelhar-se, com seus episódios estranhos e situações insólitas, à gente de verdade que viria a emergir nas seções Fale com ela e Consultório Sentimental. Há novas permutações, jogos de contrastes; por exemplo, entre Lola e Marcelo, seu Narciso, interlocutor na web que foge do encontro, ao contrário de Clara e Sébastien, empenhados em encontrar-se.

O conjunto de narrativas, multiplicando-se em tantos enredos, retoma a seu modo um dos capítulos de A dupla chama de Octavio Paz, sobre o amor cortês, aquele dos trovadores pela inalcançável esposa de um senhor feudal. Separados, Clara e Sébastien sentem-se provençais contemporâneos: “eu agora entendo por que, na Andaluzia, os emires se declaravam escravos de suas amantes / por que os poetas provençais – imitando os andaluzes – inverteram a relação tradicional entre os sexos e se disseram servidores de suas damas, que eles chamavam de suseranas”. Por isso, trocam poemas e mais poemas através de e-mails. Em sua forma mais sublimada, por isso sublime, o amor cortês é um ritual realizado através da poesia, e não necessariamente do encontro físico. Promove a troca de papéis, do lugar do homem e da mulher na hierárquica sociedade feudal – o apaixonado passa a ser um servidor, e a mulher amada sua senhora, levando Sébastien a observar: “só quem nunca viveu o contentamento que o amor propicia não entende a inversão”.

Porém, mais que sublimação, o amor é erotismo partilhado: “protegidos pela muralha milenar, nós rememoraremos o culto de Afrodite”. Perto do final da narrativa, há uma afirmação de Clara: “o mundo mudou”. Na verdade, foi ela quem mudou – “eu mudei a meus olhos / eu me vejo de outra maneira”. Por isso, pode reviver personagens históricos e literários que se moveram pelo mundo e ao longo do tempo: “Paris, Bordeaux ou o Rio / e por que não a Grécia, Eva?/ Delfos, para olhar o Parnaso”. Alguns dos roteiros que, realizados, resultariam nas crônicas de viagem publicadas em Quando Paris cintila.

O final de O amante brasileiro relaciona-se aos mitos fundamentais que falam do amor, especialmente o de Orfeu. O patrono dos poetas é Sébastien, que, depois de haver escrito tanta poesia lírica em seus e-mails, supera a barreira do espaço; metaforicamente, supera o tempo e a morte. Mas com uma diferença fundamental, em mais uma inversão: no mito, Orfeu desce aos infernos e, para resgatar Eurídice, promove metamorfoses através de sua lira, imobilizando as criaturas infernais. Continua o mesmo, e quem se transforma ao longo das etapas do resgate – de morta em viva e novamente em morta – é Eurídice. Já neste livro, é Sébastien quem muda: viaja, não ao inferno, mas ao paraíso, local de celebração pagã; e, de europeu, passa a ser verdadeiramente o amante brasileiro.

Encerra-se aí a história desses amantes? Certamente não: o final de O amante brasileiro é abrupto e por isso aberto. A protagonista, a mesma – anônima em O sexophuro, depois Lia, Clara, Eva –, continuará a viajar, a metamorfosear-se e a amar, no centro de uma constelação feita de signos em rotação.

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(1) Cláudio Willer, poeta, ensaísta e tradutor, autor de Os jardins da provocação e Volta, entre outros