Alain Emmanuel Dreuilhe: O combate à Aids

Alain Emmanuel Dreuilhe: O combate à Aids

Betty Milan
Este texto integra o livro A força da palavra.
Foi publicado como “Livro propõe nova estratégia
contra a Aids”, Folha de S. Paulo, 16/01/1988

Alain Emmanuel Dreuilhe nasceu no Cairo em 1949. Durante a infância e a adolescência, viveu no Camboja e depois no Vietnã. Cursou em Paris o Instituto de Estudos Políticos e escreveu uma tese sobre Marcel Proust e os nacionalismos. Instalou-se em 1977 nos Estados Unidos, onde morreu no começo dos anos 1990. Seu livro Corpo a corpo, Aids, diário de uma guerra foi traduzido no Brasil.

Guerra ao invasor! Guerra ao vírus! A palavra de ordem é de Alain Emmanuel Dreuilhe, um aidético que do diário de sua doença fez uma obra-prima: Corpo a corpo.

Dreuilhe perdeu o companheiro. Presenciando sua agonia e morte, topou com a indiferença e até mesmo a repugnância dos outros. Brotaram o ódio, o desejo de revanche e o livro contra a descrença dos médicos na possibilidade de resistir e contra a estigmatização dos homossexuais. Ao veredicto de morte, Dreuilhe opôs o seu grito de vida, Corpo a corpo, cujo texto reproduzi nas respostas de uma entrevista imaginária que, algum tempo depois de editada, me valeu uma resposta do autor, aqui publicada como adendo.

 

Betty Milan: Se eu não tivesse lido o seu livro, continuaria a só me encolher toda à simples menção da Aids. Você escreve que vive com ela, e eu agora, depois da leitura, vou poder viver com o medo, não mais entrar em pânico. O terror na sua opinião é o resultado de quê?
Alain Emmanuel Dreuilhe: Quem fala do aidético fala dele como se ele já estivesse morto. O inimigo não é tanto o vírus em si, mas a convicção inquebrantável da mídia, da opinião pública, do meu pai, de todos os meus amigos, de que a Aids é uma doença rapidamente fatal e sem remédio.

BM: Isso não é enlouquecedor?
DREUILHE: A Aids talvez seja sobretudo uma doença mental; não tanto porque o vírus pode afetar nosso cérebro, e sim porque o isolamento e a angústia em que nos obriga a mergulhar fazem de nós alienados.

BM: O que podem os psicanalistas fazer pelos aidéticos?
DREUILHE: O choque provocado pela minha doença me levou a consultar um psicanalista. Foi ao longo da terapia que me ocorreram todas as metáforas guerreiras; eu comecei a raciocinar como um estrategista, um guerrilheiro.

BM: O que mais me impressionou no seu texto foi você ser menos a vítima do que o combatente, exprimir a dor para mais entoar árias marciais contra o vírus invasor, para melhor se defender. O que o levou a lutar assim por este seu corpo que agora só o faz sofrer?
DREUILHE: O corpo é uma pátria na qual crescemos. A pátria às vezes nos decepciona. No entanto, estou pronto a tudo, como os resistentes, para não aceitar o jugo do vírus. O importante é se valer do espírito da guerrilha e inverter os papéis. Considerar que os impostores tomaram o poder no meu corpo, que a autoridade do vírus é ilegítima e partir para a reconquista da minha moral e do próprio terreno biológico. Cabe à Aids evacuar! Por hora, o inimigo está por cima, porém a resistência está se organizando. Trata-se somente de ganhar tempo até o dia do desembarque dos sábios americanos na Normandia.

BM: Ganhar tempo é a palavra de ordem, só que para poder obedecê-la é preciso que o sujeito aceite a vida sem garantia. A vida, aliás, não dá garantia alguma, mas nós fazemos de conta que sim. O aidético, como o soldado, é forçado a encarar a verdade e você, para suportar isso, invocou e declarou a guerra. O fato de ser um francês e pertencer a uma tradição guerreira foi decisivo para que você passasse ao ataque? A França teria se imposto para fazê-lo reagir?
DREUILHE: Sim, esta França que eu acreditava ter rejeitado voltou com toda a força. Qual mãe que, ao saber da minha doença, tivesse se precipitado para me acudir. A cultura francesa e o meu corpo, de que eu aproveitava como um ingrato, são os dois pilares que ainda estão em pé e nos quais procuro fincar solidamente a minha fúria de viver, para que o rio lamacento da Aids não me leve.

BM: O que é preciso fazer para resistir?
DREUILHE: Os que se tornam doentes devem esquecer quem eles são, tudo o que foram até então, despojar-se de suas vestes e aprender a viver segundo os cânones do exército. É preciso que eu esqueça todos os meus reflexos do tempo de paz… Para sobreviver, é preciso morrer para si mesmo e moldar outra mentalidade, agressiva e resolvida, austera e disciplinada… Se a nossa pessoa de antes da guerra não morre, nós é que morremos.

BM: Guerra é guerra…
DREUILHE: Trata-se da Terceira Guerra Mundial. Segundo a Organização Mundial da Saúde, 165 países entraram em guerra e este novo vírus, que não tinha existência oficial até que as suas primeiras vítimas caíssem, é como uma nova guerra, uma redistribuição das cartas, um realinhamento dos cordões sanitários que perturbam a situação internacional. Nosso fronte russo, afastado mas crucial há quarenta anos, é agora o Zaire, as Filipinas ou o Brasil, todos às voltas com um inimigo comum, mais ou menos capazes de se defender, segundo o seu grau de desenvolvimento e organização. A imprensa nos informa constantemente dos avanços e recuos dos diversos frontes, tem tendência a insistir nas atrocidades cometidas pelo inimigo e sabota o nosso moral.

BM: O terror é o que mais fortifica o inimigo?
DREUILHE: Claro. Se até mesmo os nossos chefes ou médicos mostram que duvidam de nossa coragem ou de nossa força moral ou física, como poderíamos acreditar na vitória? Nos Estados Unidos, a maioria dos médicos se contenta com pouco, basta-lhes prolongar a guerra. Vejo tantos camaradas em cuja sobrevida o próprio médico não acredita! Mais do que a nossa imunidade, é a nossa confiança que o vírus destrói. O terror da sociedade não-aidética pode levá-la a adotar medidas draconianas, a esquecer que os aidéticos são ainda seres humanos e que a doença não mata tão rapidamente quanto os mais aterrorizados gostariam.

BM: O estranho entre esses não-aidéticos, que você aliás chama de “arianos da imunidade”, é eles não perceberem que tudo já mudou, todos nós somos feras feridas. A espécie se classifica em sadios, potencialmente doentes e doentes. Uma dúvida atroz atormenta os não-doentes. Os ditos sadios podem ter certeza de que o são sem o teste? de continuarem a ser após a transa com parceiros não testados? Só quem não transa sem conhecer a ficha médica do outro não corre risco algum. Ou só quem não teve nenhuma relação extraconjugal nos últimos dez anos. Isso significa que nós nos tornamos policiais do sexo e prisioneiros do medo que ele inspira. O tempo agora é do encarceramento voluntário! Nós, que havíamos conquistado a liberdade sexual, devemos viver isolados. Nós, que dispomos da pílula anticoncepcional e da nova pílula francesa contra a gravidez indesejada… O paradoxo é absoluto, a nossa situação, surreal! São os velhos que se tornaram menos mortais, são os que já não transam que mais têm o futuro diante de si. O teorema da modernidade é absurdo: A EXPECTATIVA DE VIDA É DIRETAMENTE PROPORCIONAL À IDADE. No limite dessa insensatez, teremos uma primavera só de árvores secas! A saga da Aids é de todos, embora os homossexuais sejam estigmatizados. Por que não protestaram contra a estigmatização?
DREUILHE: Mais do que os cancerosos ou os outros doentes, os aidéticos homossexuais ou drogados se acreditam culpados por causa do seu modo de vida passado, de suas ações, que lhes parecem ainda imorais porque a maioria recebeu uma educação tradicional de que não pode se livrar completamente. Imaginem uma criança judia, educada numa escola católica, cujos professores criticassem constantemente os seus ancestrais por terem crucificado Cristo. Como se sentiria ela digna de viver, se adoecesse e fosse entregue àqueles bons católicos? É o que acontece com os homossexuais educados numa sociedade heterossexual que não está pronta a lhes perdoar o estilo de vida, estão errados por princípio. Se a natureza lhes declara guerra, têm poucos aliados e devem contar consigo mesmos… O primeiro reflexo dos grupos estigmatizados, como os judeus, é o de se considerarem vencidos, quase culpados, subirem sem protestar nos vagões blindados dos nazistas. Igualmente, muitos aidéticos não se revoltam e acham que de algum modo o seu destino se cumpre e eles devem pagar pela sua diferença. Com os judeus ontem, com os aidéticos hoje, as autoridades agiram denotando o mesmo incômodo. Fiquei gélido com a indiferença, o desprezo de muitos heterossexuais que, à maneira dos pequenos burgueses alemães, vagamente antissemitas, viam os seus vizinhos judeus serem levados e não intervinham, talvez por medo, mas também porque tendiam a ver na ação dos nazistas uma certa justiça…

BM: Você certamente ignora o que ocorre no Brasil. O nazismo aqui não é uma metáfora. No Rio de Janeiro, 70% dos hemofílicos e l0% dos operados que receberam transfusão são soropositivos. O controle do sangue sendo quase inexistente, o vírus é sistematicamente inoculado. As autoridades locais se tornaram nazistas por omissão; alegam, para se defender, que não têm como acabar com a máfia dos bancos de sangue clandestinos controlados por contraventores e políticos conservadores, porém sequer fiscalizam os bancos de sangue oficiais. Em vez de combater a Aids, acusam a direita de disseminá-la. Nesse meio tempo, o vírus ataca pela direita, ganha território e vai tomando o nosso corpo, já supliciado pela fome e pela seca. O Brasil é nosso, dizem as tais autoridades que, não tendo sido capazes de criar uma democracia política, conseguirão democratizar a Aids. O vírus para todos. Serão elas discípulas locais do inoculador de Auschwitz, o Dr. Mengele, que, aliás, se escondeu e foi enterrado aqui? O meu humor é negro porque não me resta outro diante da cena que antevejo, aidéticos abandonados entre os deficientes da subnutrição e os retirantes da seca… Até que um dia o sertão vire mar e a palavra de Glauber Rocha se cumpra. Por ora precisamos inventar maneiras de resistir. Você também resiste escrevendo, não é?
DREUILHE: Desde que comecei o livro, a doença não se agravou. A escrita, mais ainda do que a terapia, me fez compreender a complexidade dos sentimentos que minha situação fazia nascer em mim. Tenho a satisfação profunda de não ter cedido um centímetro de terreno fisiológico e de ter desnudado certos mecanismos da máquina infernal.

BM: Ter defendido vigorosamente a sua “pátria homossexual”…
DREUILHE: Se eu morrer de Aids, será por uma causa à qual não renunciei: a aceitação das minhas forças e fraquezas, o respeito pela minha homossexualidade e a dos outros, a celebração da minha personalidade, das escolhas que fiz, do amor por mim e, através de mim, por todos os seres humanos…

BM: Você arrancou a mordaça que lhe foi imposta para lembrar à cristandade que ela um dia foi capaz de beijar o leproso… O vírus da Aids seria para você o vírus perverso da sabedoria?
DREUILHE: Talvez…