Afastando o louco amor do divã

Afastando o louco amor do divã

 

Gérard Lebrun (1)

“Toujours des mots
Rien que des mots
Des mots d’amour…” (2)

Ainda vejo Piaf, os braços rentes ao corpo, cantando o quanto “as palavras de amor” são vãs. E, no final da canção, os braços, que subitamente se levantavam. A inimitável voz deixava de ser sardônica. Agarrada na cilada das palavras, vestida de preto, a mulherzinha urrava do fundo do coração:

“C’est fou ce que je peux t’aimer
mon amour, mon amour
C’est fou ce que je peux t’aimer d’amour” (3)

Ninguém, na sala, tinha vontade de rir. Bastaram aqueles dois braços se erguerem no palco para, em poucos instantes, nos fazer passar do grotesco ao sublime. “Eu te amo”, “Sem você eu não existiria”, “Sou louco por você”.

Betty Milan (4), com tanta coragem quanto fineza, pretende nos mostrar que este falar monótono dos apaixonados não é tão grotesco quanto nosso “bom gosto” nos leva a crer. Destas “palavras de amor” é fácil demais zombar. Mas nós mesmos não as murmuramos ou as escrevemos algum dia? Por que, então, desdenhar este código da gente simples? Por que sorrir pensando no que sussurram, à noite, nas esquinas desertas dos bairros burgueses, jovens e belos sedutores morenos nos ouvidos das empregadas que eles abraçam?

“Toujours des mots
Rien que des mots
Les mots d’amour…”

“Você me ama?”… Não se engane, nos diz Betty Milan, o que te interessa é menos a resposta do que o calafrio que te atravessa ao fazer a pergunta.

“Você me ama?”… Indago repetidamente, menos para estar certo de você do que para temer o não, saber assim que te amo. Interessa-me antes a emoção provocada pela pergunta…

De modo que os clichês da linguagem amorosa não são tão ingênuos quanto parecem. Betty Milan tem a inspiração de evocar a Roxane de Edmond Rostand, ouvindo do seu balcão as belas palavras de amor que Cirano sopra ao jovem Cristiano. Este é belo como um deus, mas lhe falta espírito. Cabe ao feiíssimo Cirano, deslumbrante na conversa, encontrar as palavras que seduzirão Roxane. O estratagema acaso é tão desonesto assim? O importante é que o amor seja dito: porque ele é uma invenção cultural.

Apesar do que levariam a pensar certas páginas do livro, não é o discurso de Diotima que a autora retoma, mas a análise de Marivaux e a observação paciente dos moralistas. O seu elogio do amor não esconde as contradições nas quais os amantes caem, os acessos de loucura a que cedem e a tortura, quase sempre fútil, que eles infligem a si mesmos por causa do ciúme. Amar é, antes de mais nada, viver a impossibilidade da união total e, mesmo depois de reconhecer tal fracasso, continuar amando o Amor.

Não há amor sem paixão. E Betty Milan se interessa pela paixão. Daí a atenção que ela dá às amantes abandonadas, aos casais separados e aos encontros impossíveis. O universo no qual ela nos introduz é o da religiosa portuguesa, o de “Adèle H.” e de todas as suas irmãs de miséria, como a jovem rendeira do Nordeste, que, “abandonada pelo noivo, passou o resto da vida soletrando no bilro “nunca, nunca te esquecerei”. No decorrer dessas páginas, vemos passar o cortejo dos estropiados e das malditas do amor louco: Julie de Lespinasse continua suplicando amor a um Guibert indiferente. A essas sombras ilustres acrescentam-se alguns desconhecidos, como um jovem sargento apaixonado por um dona de bordel numa cidade de guarnição do Nordeste.

Excêntricos de uma outra era? Certamente. Mas é refletindo sobre tais casos-limites que melhor compreenderemos o sentido e a força do amor como cerimonial do imaginário. “Dependo da reciprocidade para ser feliz ou infeliz, não para sentir. Importa menos ser amado do que amar e, na impossibilidade do gozo narcísico do espelhamento recíproco, quero o gozo da falta – masoquista, sim, porém ilimitado, eterno.” Incrível que o amor possa se nutrir de si mesmo e fazer do belo indiferente ou do ingrato que o suscitou emblema de um culto que o apaixonado termina consagrando… ao Amor. Não é esta a história da religiosa portuguesa? “Acima de Deus, o amado, mas acima deste, o Amor.”

Betty Milan não defende a causa da paixão. Mas se esforça, parece-me, para nos fazer considerá-la sob um ângulo diferente do patológico. Esforça-se para nos fazer regredir à ingenuidade da era clássica e nos convencer que a história de sóror Mariana é mais do que um belo caso clínico. Em suma, nos convida a recuperar o conceito de “paixão”, aquém da psicopatologia do século XIX, que o explodiu.

A autora talvez não indique suficientemente as coordenadas culturais e as etapas de formação do sentimento amoroso no Ocidente (“cortes de amor” da Idade Média, preciosismo etc.), que é o seu tema. E a falta de um horizonte histórico – tão perdoável, é certo, em espaço tão curto – poderia levar o leitor a pensar que o ensaio propõe uma interpretação de um sentimento natural. Esta lacuna não é grave porém. O essencial é que a normalidade – tão inatual –, à qual a autora se refere, nos faça medir o quão precárias são nossas categorias da afetividade, tais como foram elaboradas pelo cientificismo do século XIX.

Betty Milan nos fala de um sentimento que hoje não possui mais estatuto oficial, agora que a sexualidade se tornou, solenemente, objeto de “ciência”. “Acaso… faço do amado a condição absoluta do desejo e vivo abertamente na sua idolatria? A ausência, quem hoje a cultiva? Quem hoje escreveria como Stendhal a Mathilde, que a deixava para estar mais com ela?” Mas o amor merece ser assim relegado à loja do antiquário? Não. Tal depreciação do amor não é nada óbvia, e não devemos opor o discurso da paixão ao sexo, à sexologia, como o fútil ao sério, o arcaísmo à positividade. Marivaux e Stendhal não são menos “científicos” (ou menos “racionais”) do que as exposições relativas às técnicas do orgasmo. Indo mais longe, perguntemo-nos se a volta do Amor – esta vítima de nossa “cultura” – não é um signo reconfortador. Se uma mentalidade nova não se delineia e o “amor louco” não será mais considerado objeto de zombaria. “Banido, deportado, sub-repticiamente o amor volta à cena e traz consigo o sujeito – este retorno não seria hoje subversivo?”

Protesto, portanto, contra toda “racionalização” pedante da vida afetiva, contra toda substituição do erótico pelo “sexo programado”. Revolta contra “o saber dos sexólogos” e seus pretensiosos oráculos. Esta é a primeira linha de tiro de Betty Milan. Mas este alvo ela só visa de passagem, porque tem contas mais urgentes a ajustar com outro adversário. E essa segunda polêmica sem dúvida lhe causará um maior número de aborrecimentos – igualmente implacáveis, porém mais sorrateiros, pois é certo que ninguém vai ficar contra a autora por combater o machismo. Os opositores vão usar máscaras mais honrosas para zombar dela. Razão a mais para apoiá-la com toda a clareza.

Quem negará que a nossa formação “latina” convida o homem a visar depreciativamente a mulher? Que o “eterno feminino” é, na verdade, o triste apanágio de um animal que só tem direito de sentir prazer na passividade e na submissão? E a mulher que tenta escapar a tal destino é logo relegada à “sem-vergonhice”? Por que negar a evidência, isto é, que o único erotismo confessável é o monopolizado pelo macho? Nesta estranha cidade sexual que ainda é a nossa (sob todas as latitudes), a divisão em homens livres e escravos nunca deixou de ser óbvia – mesmo na Europa, a “pílula” ainda não convenceu o senso comum de que é tão normal uma moça arranjar um amante quanto uma rapaz ter uma namorada.

Daí o interesse estratégico que reside (na luta contra o obscurantismo) em reabilitar o amor, de modo que este não seja mais tema de piada, e em representar a “galanteria” e o discurso amoroso como coisa distinta de manobras donjuanescas. À luz do livro de Betty Milan, compreende-se por que ela se empenha em dar valor positivo a atitudes e sentimentos que só à primeira vista parecem “românticos” e “antiquados”. É que tais atitudes, tais sentimentos faltaram cruelmente à civilização dos “senhores de engenho”, como a descreveu Gilberto Freyre em páginas já clássicas.

Levando o seu leitor a refletir sobre esses dados, Betty Milan não se dedica absolutamente a uma provocação “contranacionalista”. Pretende antes dizer que nunca é tarde demais para tentar dar a uma nação o século XVIII que lhe faltou – nunca é tarde demais para tentar substituir pela igualdade dos sexos a “guerra fria” que os opõe.

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1. O filósofo francês Gérard Lebrun (1930-1999) viveu no Brasil por mais de duas décadas. Foi professor de filosofia na Universidade de São Paulo e na Unicamp e colaborador em jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo. Entre vários títulos lançados em português e em francês, suas análises sobre Hegel, Nietzsche, Foucault, Kant, entre outros, foram reunidas no livro Passeios ao léu, da Brasiliense, que dele publicou também O que é poder.
2. “Sempre palavras/ Apenas palavras/ Palavras de amor…”
3. “É louco como eu posso te amar/ Meu amor, meu amor/ É louco o quanto eu posso te amar/ Com amor”.
4. Em O que é amor, São Paulo: Brasiliense, 1983. (Coleção Primeiros Passos).