A senhora IV (anos 1980)
Betty Milan
Da primeira vez que a viu, horrorizou-se. Como podia aquela mulher estar ali dormindo ao meio-dia em plena Garcia d’Ávila? Uma maleta de couro velha semi-aberta servindo-lhe de travesseiro, a boneca de pano ao lado. Ambas tão esfarrapadas, tão alheias à gente que passava como esta àquelas, uma indiferença pior que a miséria.
Da segunda vez, no dia seguinte, viu-a na mesma rua, dez metros mais adiante, e o que a Senhora então mais estranhou foi o fato de ela estar bem no meio da calçada. Por que ali, precisamente no lugar onde ficava mais exposta e de todo desabrigada? Não batia bem, era louca, pensou e seguiu caminho.
Terceira vez, passando de novo por ela, deu o cigarro que pedia, perguntou-lhe o nome. Leda. Comentou que sua filha estava internada e precisava dar um banho na boneca. A Senhora quis saber mais. Não tinha marido e a mãe estava morta. Por que não trabalhava? Fazer o quê?, respondeu Leda sem culpa alguma. Talvez fosse louca, talvez vagabunda simplesmente, mas ela morava na rua por não ter onde morar.
A Senhora se comoveu e dali por diante nunca deixava de lhe dizer bom-dia, trocar uma palavrinha, oferecer um cigarro àquela mulher que parecia insensível ao calor e à chuva, estava sempre de bom humor, embalava a boneca, vivia na rua os sonhos que tinha. Era lírica.
Um dia, a mulher sumiu. Só reapareceu na semana seguinte. Várias escoriações no rosto. Não queria conversa. A Senhora lhe ofereceu um cigarro. Obrigada, aceitava, mas precisava ir e, levantando-se, recomendou à Senhora que se cuidasse.
– Por quê?
– A carrocinha.
– Como?
Ah, ela então não sabia da carrocinha que passava e levava embora para o hospício? Lá onde eles matam a gente de fome?
Pior que deixar Leda na rua era levá-la para o hospício. A Senhora antes acreditava que hospício era lugar de louco, mas agora percebia que louco era quem a carrocinha designava como vítima, interno futuro de algum hospício, onde a cidade recolhia sua miséria, confundia impiedosamente numa mesma exclusão os pobres, os loucos e os vagabundos.