A Senhora III
Betty Milan
Este texto foi publicado com mesmo título
na Folha de S. Paulo, 19/05/1981
Apesar do pouco estudo que tinha, gostava de ler e procurava saber da boa literatura. Ouviu falar que acabava de sair um livro de Clarice Lispector, Onde estiveste de noite?, e quis comprá-lo. Telefonou primeiro à livraria mais próxima e perguntou se vendia ficção.
— O quê? Não, não, aquele livro não existia. A resposta não era crível, e a Senhora apalermada pediu que se chamasse outra pessoa. Convicto do que dizia, o livreiro se recusou.
O jeito era uma livraria importante da cidade.
— Alô. O senhor poderia me dar uma informação?
— Claro, pois não.
— Vocês aí têm o último livro publicado de Clarice Lispector?
— Como?
Agora, o vendedor desconhecia a autora, mas a Senhora que aguardasse um momentinho pelo dono…
— Clarice Lispector, sim, sim, mas o último qual é?
O primeiro desconhecia o gênero ficção, o segundo, uma de nossas maiores ficcionistas e o terceiro, o grande lançamento do mês.
Muita coisa do que há lá fora nós não temos, pensou consigo a Senhora, mas o pior é não sabermos o que temos. Subdesenvolvimento também era isso, era Clarice Lispector menos lida do que poderia ser, penando mesmo depois de morta e precisamente por ter sido uma escritora de verdade.
Tivesse ela posado nua, sido destaque de escola de samba, preconizado a bissexualidade, aprovado ou desaprovado o clube dos machões, sido a musa de algum iminente colunista social, participado ativamente de debates sobre o Relatório Hite, entrevistado personalidades da moda na televisão, ou ainda se candidatado à Academia Brasileira de Letras, é certo que nenhum livreiro a desconheceria. Mas Clarice Lispector, ciente de que escrever é o modo de quem tem a palavra (e não a imagem ou a condecoração) como isca, isolou-se para nos dar o melhor de si.
Por isso, apesar da obra que fez, apesar de já ter sido traduzida em diversas línguas, aqui precisava de tempo para que o seu último livro fosse lido. Continuava a pagar.