A Senhora II
Betty Milan
Este artigo foi publicado com mesmo título
na Folha de S.Paulo, 7/04/1981
Recuperado o passaporte, a Senhora voltou para São Paulo. Ali descansaria. O simples fato de não precisar de passaporte para existir já era um sossego. No Brasil, fosse como fosse, estava no país que é da gente.
Descansou até um dia sonhar consigo mesma em Roma, se rever na Vila Adriana entre as mil e uma fontes, lembrar de tamanha beleza e querer mais. Precisava pular a cerca de concreto, estar um pouco onde o pôr-do-sol fosse uma realidade. Iria para o Rio, na casa de uma amiga de infância. Telefonou, combinaram, a Senhora despediu-se das filhas já criadas e rumou. Ipanema, uma amiga morava numa rua de lojas elegantes. De fazer inveja às europeias, tudo acessível, bem à mão, inclusive o mar. Andava-se um pouquinho e a cidade se abria numa praia generosa.
Só a violência das ondas que a impedia de nadar a contrariava. Como a amiga insistisse, decidiu se matricular num clube da vizinhança, em que só precisaria apresentar uma foto três por quatro, coisa que se fazia ali do lado mesmo, na fotomática do supermercado da Visconde de Pirajá.
Chegando, logo viu a máquina. Aproximou-se dela para ler as instruções e percebeu que não havia. Dirigiu-se a uma balconista. A máquina não funcionava sozinha e a encarregada não estava. A que horas viria? Daqui a pouco. Em vez de ficar plantada, voltaria mais tarde, depois do almoço. Às duas horas, chegou de novo, para agora esperar a moça até as três. Cumprimentou-a, perguntando se ela era a que nunca estava. Ora, quem mandava vir na hora errada? a moça era humana, tinha sede, fome, dor de barriga.
A Senhora não ousou dizer mais nada. Entrou na cabine, sentou e expôs o rosto pensativa. Aquela história de fotomática que tinha sede, fome e dor de barriga era um absurdo. Não era precisamente para suprimir as perturbações causadas por essas urgências que a tecnologia existia? De que valia a automatização se a máquina dependia da moça? Considerou baixinho e depois comentou. A Senhora acaso se imagina no exterior? E a moça foi contando o que antes ocorria. Instalada, a máquina ficou entregue à própria sorte. Serviu de cama e de privada, tendo mesmo havido quem nela tomasse banho e se enxugasse nas cortinas.
Agora compreendia. Não nos faltava a máquina, mas a ideia do bem público, uma incivilidade solapava as conquistas da tecnologia, impunha a fotomoça. Queríamos ser modernos, mas eclodíamos atrasados no coração de Ipanema. Pensou nisso e lembrou que todos os orelhões daquele bairro estavam quebrados. Concluiu que o país assim sendo não era bem o país da gente, como tanto gostaria que fosse.