A Senhora I

A Senhora I

Betty Milan
Este texto foi publicado com mesmo título
na Folha de S. Paulo, 28/02/1981

Sessenta anos. Do Brasil, passar férias na Itália. A noite estava linda e não havia por que não voltar a pé para casa. Florença, o Arno enluarado não era coisa de todo dia.

Muito menos a bolsa arrancada da mão, o rapaz que subiu na motocicleta e desapareceu atravessando a ponte.

Adiantou gritar Ladroni? Fora-se o passaporte, ela estava perdida. Que não se alarmasse, não havia razão para tanto, disseram. Indo aos Carabinieri, recebia um papel autorizando a viajar pela Europa inteira. Roubo, ali, acontecia de trinta a quarenta por dia, principalmente no mês de agosto. Delinquentes e estrangeiros.

Os florentinos agora lhe pareciam suspeitos e não acreditou em nada. Certeza ali só tinha da mão que ainda sentia puxar.

Deixou-se conduzir aos Carabinieri, deixou que se fizesse a queixa, pegou o papel que lhe deram. Um que já não era o passe livre prometido, mas que para sê-lo precisava apenas do carimbo do Consulado. Na falta de Consulado brasileiro em Florença, a Senhora deveria ir ao da Suíça e aí a questão se resolvia.

Passou o fim-de-semana à espera da segunda, do carimbo. Antes mesmo de o Consulado se abrir, estava lá. Mas não para o que supunha. A Suíça não respondia pelo Brasil e agora ela devia se endereçar ao consulado brasileiro em Roma.

Precipitou-se, já esquecida de Florença, das férias interrompidas. O primeiro trem da manhã. Queria chegar em tempo hábil. Roma, estava certa, era a solução. Seria, não fosse o prazo: 5, 10, 15, 20 dias. Ali no Consulado, o papel dos Carabinieri de nada valia. Para sair da Itália, a Senhora precisava de passaporte. Para outorgá-lo, o Consulado dependia do Brasil. E exceção não havia.

Teve fé e apostou no 5. O jogo era de todo aleatório. Teria acertado no 25. Vinte e cinco dias intermináveis a só esperar.

Vítima de um roubo, a Senhora havia se tornado uma non persona. Nenhum país a reconhecia e, paradoxalmente, sem passaporte, o Consulado também não.

Na falta de documento, perdia-se a identidade, imaginariamente inalienável, de fato sujeito ao tempo das autoridades no Brasil. No mesmo ato, eclipsava-se a função consular. Impossível reconhecer a cidadã só pela nacionalidade.

A Senhora, uma non persona. O cidadão, inexistente.

E o Brasil o que é?