A responsabilidade feminina nas eleições presidenciais

A responsabilidade feminina nas eleições presidenciais

bettymilan

 

O aborto é um sofrimento para qualquer mulher. Mas, para as que são pobres, ele pode ser mortal. No tempo em que eu trabalhava no Hospital das Clínicas, ele era feito sem anestesia. Geralmente em quem havia tentado abortar em casa e chegava em estado grave no pronto socorro. Ouvi um colega dizer que a mulher não devia mesmo ser anestesiada para aprender a não engravidar de novo. Como se, naquela época, a consciência da necessidade da contracepção e os meios para fazê-la estivessem ao alcance de todas.

A interrupção voluntária da gestação, aprovada há quase meio século, na França, é imperativa quando a mãe não quer ou não pode assumir a criança. Dar a luz para abandonar o filho? Me lembro de uma consulente que escreveu para o meu consultório sentimental em estado de absoluto desespero. Mãe de dois delinquentes e novamente grávida contra a sua vontade. A consulente, que não tinha recursos, me perguntava o que fazer e eu respondi que, se o aborto fosse legal, eu recomendaria.

Como não legalizar o aborto, num país como o Brasil, onde tantas mulheres não têm como educar os filhos e precisam abadoná-los? A legalização também se impõe por razões sociais e, seja qual for o credo de quem vota, isso tem que ser levado em conta. O voto é um ato político e, além de não votar contra os próprios direitos, as mulheres não podem votar contra a sociedade, dando o seu voto a qualquer candidato expressamente contrário à interrupção voluntária da gravidez. Isso significa deixar que o aborto em condições adequadas seja o privilégio das ricas e as pobres continuem destinadas a introduzir uma agulha de tricô no útero, correndo o risco de ter septicemia e morrer.

A questão terá que ser resolvida como foi na França, por um ministro da saúde que saiba convencer a assembléia nacional da necessidade da legalização. Vale lembrar como Simone Veil, ministro da saúde de Giscard d’Estaing, procedeu em 1974.

Veil começou o seu discurso histórico dizendo aos membros da assembléia que não falaria enquanto parlamentar, mas enquanto mulher. Acrescentou que faria isso com um profundo sentimento de humildade diante da complexidade do problema, porém com a certeza da importância de uma mudança na legislação. O poder público, disse ela, não pode negligenciar a sua responsabilidade, mantendo o status quo. Trata-se de uma forma de laxismo. Ninguém ignora que não há como impedir o aborto clandestino e nem como punir todas as mulheres que o praticam. A proibição, na realidade, não vigora e manter a legisalação atual é uma forma de impostura.

Mulher nenhuma faz aborto com alegria. Basta ouvir as grávidas que são obrigadas a passar por ele. Mas, para certas mulheres, o aborto é a única saída e, quando é assim, a família e a sociedade também são as beneficiárias. A lei hoje favorece o abandono das crianças, ou seja, a delinquência. Obriga a investir mais e mais na segurança, em detrimento da saúde e da educação.

Quem alega que o embrião é portador de todas as virtualidades do ser humano e, por isso, não pode ser eliminado, não leva em conta que ele é apenas uma promessa de ser humano. Segundo estudos da Organização Mundial da Saúde, boa parte das concepções se interrompe espontâneamente nas primeiras semanas da gestação. Por que privilegiar o embrião, em detrimento da mulher que o concebeu, quando a gravidez indesejada pode ser tão nefasta para ela quanto para a sociedade ?

A apologia da vida, neste caso, é contrária aos vivos. Ao pensar no voto, é necessário se perguntar que presidenciável pode escolher um ministro da saúde capaz de tomar, como exemplo, Simone Veil, que hoje repousa no Panthéon, pela luta na qual se engajou, depois de ter escapado dos campos da morte. Como disse Macron, Simone Veil se opôs veementemente ao demônio da resignação ou da indiferença, foi um « mestre da esperança ».

A luta pelo direito da interrupção voluntária da gravidez, no Brasil, é de todas as mulheres. Inclusive, por incrível que pareça, das que são contra o aborto por motivos religiosos. Se o papa Francisco pudesse, ele reconsideraria a posição da Igreja, pois ela é contrária às pobres que, para não dar a luz a um filho impossível, são obrigadas a provocar um aborto perigoso. Não se pode, em sã consciência, defender a vida dos seres humanos, expondo à morte os que estão vivos.

 

Folha de S. Paulo, 2/08/2018