A relação paradoxal entre autor e editor

A relação paradoxal entre autor e editor*

Congresso Brasileiro de Escritores, 2011

 

Parceria ou oposição? Qual é a relação entre autor e editor? Parceria para que a negociação dos nossos direitos seja possível, para que possamos fazê-la continuamente.

O que explica, no entanto, a ideia da necessidade de uma oposição entre autor e editor? Os interesses econômicos em jogo, claro. Mas também uma fantasia do autor: a de que o livro nasce dele como o filho nasce da mãe, embora o livro não tenha pai nem mãe e não pertença à casa se não for acolhido por uma casa editorial.

O autor dá à luz, entre aspas. Porém depende do editor para que o livro encontre o seu verdadeiro destinatário, ou seja, o leitor. A dependência gera uma luta de prestígio, que pode inutilmente se transformar em oposição. Inutilmente, pois, com a digitalização das obras e a globalização, o autor precisa mais do que nunca do editor para defender os seus direitos e tornar o seu trabalho internacional.

Quando se trata de uma obra literária, a edição no exterior se tornou fundamental. O autor, aliás, é tanto mais bem acolhido no seu próprio país quanto mais apreciado for nos outros. Quando comecei a escrever, nos anos 1970, não era assim. Nós, escritores, tínhamos em mente o público leitor da nossa língua e acreditávamos que, para um bom texto, haveria uma boa tradução. Porém, a literatura brasileira foi pouco traduzida e, dado o desconhecimento da língua falada no Brasil, nem sempre bem traduzida.

Hoje a tradução é sobretudo para o best-seller. Um primeiro capítulo é enviado por e-mail aos editores do mundo inteiro, traduzido enquanto o livro ainda está sendo escrito e difundido com uma campanha semelhante à que se faz para lançar qualquer produto no mercado. Se o best-seller publicado for de um escritor americano, o espaço a ele consagrado na imprensa será infinitamente maior do que o espaço consagrado a um inglês, um francês ou um alemão. Quanto aos outros, dificilmente conseguem um quarto de página.

Segundo Tim Parks, escritor inglês, o espaço literário internacional é criado e produzido de duas maneiras. A primeira é a dos países que desejam estabelecer seu prestígio literário e fazem a promoção dos autores no exterior através de diferentes ações políticas. Não é o caso do Brasil, mas pode se tornar graças ao nosso trabalho junto aos poderes públicos e aos editores para conscientizá-los da importância da difusão da literatura.

Porque é da natureza mesma da literatura não ter fronteiras, como diz Salman Rushdie. Nunca é demais citar a sua Carta de Princípios: “Os escritores são cidadãos de muitos países: o país limitado e ladeado pelas fronteiras da realidade observável e da vida cotidiana, o reino infinito da imaginação, a terra semiperdida da memória, as federações do coração simultaneamente incandescentes e geladas, os estados unidos do espírito (calmos e turbulentos, largos e estreitos, regulados e desregulados), as nações celestes e infernais do desejo e – talvez a mais importante das nossas moradas – a república sem entraves da língua”(1).

A literatura depende da difusão para vigorar e por isso a ação política é necessária. Um bom exemplo é a nobelização de José Saramago para a qual muito trabalharam, o editor português e os políticos que o apoiaram. Entre eles, o falecido Eduardo Prado Coutinho, ex-adido cultural de Portugal na França.

A segunda maneira de se estabelecer no espaço internacional é a dos escritores que procuram se libertar da literatura nacional, reproduzindo as carreiras míticas de um Kafka ou de um Beckett. Nesta via, a obra não encarna e não quer encarnar o espírito de um povo, tende a ser existencialista, porque o existencialismo é uma forma de internacionalismo.

A via em questão pode implicar a renúncia, pelo escritor, de tudo o que causa estranhamento fora do seu país. Assim, ele não deverá se referir no seu texto àquilo que, para ser compreendido, necessita de um conhecimento real do seu país natal. Poderia dar mais de um exemplo disso, porque fui repetidamente objeto, na França, da seguinte consideração: “O seu texto é demasiadamente brasileiro” – “trop brésilien”.

Na situação atual, a parceria com o editor é da maior importância. Dependemos da sua ação para ter liberdade temática e formal, para não renunciar à expressão do que somos como povo. Noutras palavras, para não responder aos imperativos do mercado, escrevendo sempre o mesmo romance que se espera de nós e nos sujeitando a um “esperanto da literatura”.

A censura, hoje, é o mercado que faz. Se não impõe o conteúdo, impõe a forma que o escritor deve privilegiar. E, o que é pior, destitui a “república sem entraves da língua”, porque só o romance cuja língua não é poética é adquirido pelo editor estrangeiro. Só para este romance ele dispõe de tradutor.

Verdade que Joyce levou anos para ser publicado, mas mesmo hoje ele simplesmente não seria publicado, pois inventou uma língua nova, a joyceana. Não podendo escrever no gaélico irlandês, que era uma língua morta, escreveu na língua do opressor, a inglesa, mas fez isso subvertendo o inglês e criando uma língua poética.

Nada é pior para um sujeito do que abrir mão da sua particularidade. Nada é pior para um escritor do que ser censurado, ser obrigado a escrever numa língua pobre para existir fora do seu país ou dar uma imagem do mesmo que corresponda à do editor estrangeiro.

Para não sermos forçados a nos mutilar, abrindo mão das possibilidades da nossa língua, da nossa cultura e do nosso imaginário, devemos nos associar aos editores. Só assim, paradoxalmente, poderemos lutar contra a censura com a qual estamos e estaremos sempre às voltas por causa da “virulência” da palavra do escritor, que entra em cena para dizer o que não foi ou não pode ser dito.

Como o personagem de O vício do amor, de Mario Sabino, ousa dizer: “Chamo judeu de judeu, patrão de patrão, comunista de comunista e empregado de empregado”(2). Não abre mão da liberdade da palavra e por isso ele paga inclusive com a própria pessoa, como Salman Rushdie, Taslima Nasreen e muitos outros que se opuseram à tirania da censura. Não aceitá-la faz parte do nosso ofício, que é a nossa missão.

 

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5º Congresso Brasileiro de Escritores, União Brasileira de Escritores (UBE), Ribeirão Preto (SP), 12 de novembro de 2011.

(1) A Carta de Princípios foi escrita por Salman Rushdie, à epoca da fundação do Parlamento Internacional dos Escritores, em novembro de 1993. Um grupo de escritores e intelectuais europeus e americanos se organizaram para reivindicar a autonomia da literatura e insistir na necessidade de uma estrutura capaz de organizar um movimento de solidariedade internacional de resistência às perseguições contra escritores e jornalistas no mundo. O Parlamento deu origem a uma rede de cidades-refúgio para acolher escritores perseguidos.
(2) Sabino, Mario. O vício do Amor. Rio de Janeiro: Record, 2011.