A psicanálise e as letras

 

Marco Antonio Coutinho Jorge1

A eleição de Betty Milan para a Academia Paulista de Letras é motivo de festejo para os psicanalistas. Médica psiquiatra, formada em psicanálise por Jacques Lacan, seu maior renovador depois de Freud, a mais nova acadêmica paulista é autora de uma obra que associa intimamente a psicanálise ao universo das letras e vivifica a psicanálise com o saber literário.

Seus primeiros livros, que abordaram as estratégias do poder na psiquiatria, na psicoterapia e no ritual religioso, já revelam profundas trilhas abertas em direção à psicanálise, cujo discurso, embora demonstre a enorme incidência da determinação inconsciente na vida humana, invoca a conquista da maior liberdade possível.

Densa e poética como uma verdadeira sessão de análise, sua escrita voltou-se para as formas da alegria – afeto privilegiado pela psicanálise, cuja experiência promove a entronização do entusiasmo e das pulsões de vida – preponderantes na cultura nacional. Em seus ensaios sobre o carnaval e o futebol, sublinhou a singularidade da criatividade brasileira, tributária do brincar e do fantasiar, modos pelos quais a criança e o adulto reinventam a realidade. A exemplo desses, outros se seguiram e revelaram a potência do pensamento psicanalítico para compreender as múltiplas forças em jogo nas mais variadas manifestações humanas.

Circunscrevendo diferentes estilos – crônicas, novelas, ensaios, peças de teatro –, sua obra é uma via de mão dupla: como ficcionista, contribui com a criação literária para a reflexão analítica; banhada pela experiência do inconsciente, a literatura de Betty transmite a psicanálise aos não familiarizados com seu pensamento. Ampliando ainda mais esses objetivos, ela ousou levar a palavra do psicanalista à imprensa e estabelecer um canal de escuta para os conflitos do leitor amargurado. Mas ao invés de lhe dar conselhos próprios ao senso comum ou baseados no conhecimento teórico, lançou mão dos ensinamentos dos grandes autores para iluminar e aliviar a dor que é inerente à vida.

A psicanálise e as letras são indissociáveis. Assim como Freud afirmou enfaticamente que “os poetas são aliados muito valiosos, cujo testemunho deve ser levado em alta conta, pois costumam saber toda uma vasta gama de coisas entre o céu e a terra, sobre cuja existência nossa sabedoria acadêmica nem mesmo sonha”, Lacan ponderou que “o artista sempre precede o analista e, portanto, o artista lhe desbrava o caminho”. Sendo assim, a presença de Betty Milan na Academia representa o reconhecimento da potência que a união entre psicanálise e literatura engendra. Invocando continuamente “a força da palavra” – título de um livro em que entrevista grandes autores – e da linguagem, nossa escritora convida o leitor para a nobre e difícil tarefa, situada no horizonte da literatura e da psicanálise: colocar palavras em nossos afetos e renovar nosso mundo interior.

 

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1 Psicanalista, psiquiatra, professor do Instituto de Psicologia da Uerj.