A Polônia ou a memória de uma história trágica

A Polônia ou a memória de uma história trágica

Betty Milan
Este texto foi publicado com mesmo título
na Folha de S. Paulo, 27/12/1981

“Por que você mente, dizendo que vai a Cracóvia para que eu pense que vai a Lemberg quando na realidade você vai a Cracóvia?” Talvez porque essa história judaica me intrigasse e eu tenha custado a captar seu sentido — de que a realidade não é critério subjetivo da verdade —, talvez por conhecer vários poloneses, ou ainda por querer saber mais sobre o que Lech Walesa representa, no dia 24 de agosto de 1981 embarquei em Orly para a Polônia.

Da viagem resultou um relato — que foi publicado resumidamente no jornal — no qual eu me referia à igreja como a força unificadora do país e afastava a possibilidade de uma união soviética. A Polônia agora é outra, mas a atualidade confirma as ideias de então e por isso me leva a voltar ao texto na íntegra.

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Avião lotado, mas além de mim e de meu marido, o historiador Alain Mangin, nenhum outro turista, fato de que só me dei conta no aeroporto de Varsóvia. Aí, carimbo no passaporte, era passar pela alfândega e depois achar um táxi. Não foi preciso fazer esforço. Mal saímos, o primeiro chofer se aproximou, 3 dólares até o centro.

Hesitamos, veio o segundo, 3 dólares ou 30 francos. Nenhum queria o zloty, a moeda do país. O preço era o dobro em francos, 18 deles a um terceiro chofer que estava um pouco mais adiante. O preço era questão de negócio.

Bastaria subir no carro para topar no mercado negro. Change money?, insistia o chofer que, além disso, em inglês só sabia dizer no turist, no business. Não, não trocaríamos nada. Acabávamos de chegar e temíamos que ele fosse da polícia. Não tardaríamos, entretanto, a saber que o medo era injustificado — o mercado negro se fazia com a cumplicidade da polícia, cuja presença aliás era contínua. Inúmeras viaturas da MILICJA no caminho.

No hotel, o recepcionista só aceita o pagamento em zloty com o recibo da compra do dinheiro no câmbio oficial — obrigatória para obtenção do visto e a 34 zlote por 1 dólar. Entramos, deixar as malas, e saímos jantar. Mal pisamos na rua, somos seguidos por um senhor que repetia change money?, oferecendo 200 zlote por 1 dólar para logo aceitar a contraproposta, 260 zlote, o valor do câmbio negro segundo nossos conhecidos poloneses de Paris. Nisso, o carro da MILICJA vinha se aproximando, faróis apagados. Vendo-o, o senhor se propôs a nos levar de carro ao restaurante, fazer assim a transação. Topamos, eu com medo do homem. Levaria alguns dias para perceber que o temor era injustificado, cambista na Polônia é como bicheiro no Brasil, sua prática é ilegal sem ser considerada ilegítima — não é crime, é contravenção.

O dinheiro no bolso, descemos, entrar no Restaurante Gastronomia. Impossível, uma fila imensa. O jeito era tomar um táxi e ir a outro restaurante, cujo endereço eu tinha no bolso. Mas como? As ruas desertas e os raríssimos táxis não paravam. Caminhamos até uma avenida mais iluminada, onde os ônibus transitavam cheios. Mostrei então o endereço a um senhor que se encontrava numa parada, ele indicou o nosso ônibus e aí o lugar onde saltamos. No trajeto, vi, estranhando, que as igrejas estavam abertas. Dez horas da noite, e os padres caminhavam acompanhados de jovens, enturmados como eu nunca antes havia visto, fato cujo motivo logo se evidenciaria nos contatos posteriores. Num país dividido politicamente e ameaçado como a Polônia, a Igreja é a única força unificadora, e a função do sacerdócio, decisiva.

Da parada até o restaurante, fomos a pé, conduzidos por uma senhora a quem de novo mostrei o endereço. A mesma solicitude que anos antes eu havia encontrado numa cidade da Europa Oriental, Budapeste. O cardápio era uma promessa de pratos em falta, mas o cenário, pelo estilo e requinte luxuoso, evocativo do império austro-húngaro.

Para voltar, um fiacre, ruas escuras e vazias, o só estalo da ferradura no asfalto, passo a passo, vagarosamente como parecia andar a Polônia em pé de guerra, recolhida, quase parada. Na porta do hotel, mais uma vez change money? change money? enquanto a MILICJA se aproximava. Decididamente, se tratava de um estado policialesco temperado pela corrupção. Surpreendia-nos mais verificar que, no espaço da rua, a lei básica era a do mercado, que o socialismo expulsava por uma porta e a realidade reintroduzia por outra.

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Manhã seguinte: a praça do mercado, inteiramente reconstruída em 1949, edifício por edifício, a partir de quadros, desenhos e mesmo lembranças dos arquitetos e operários, um trabalho gigantesco para superar a memória da guerra.

Uma certa animação tornava a praça aconchegante. Mas como não ver a fila de gente que se acotovelava para comprar um hot dog ou um pedaço de pizza enquanto a vendedora, sem outra concorrente, servia sem pressa alguma? Como não imaginar outra barraquinha estabelecendo-se ao lado para melhorar o serviço e encurtar a fila? Dali pelas ruas em volta, o passeio nos mostraria as lojas praticamente vazias, quitandas onde as frutas e os legumes murchos, açougues onde só os ganchos e, diante dos poucos empórios abertos, as pessoas esperando a vez sem nem mesmo se impacientar, indiferentes à própria sorte, como aliás as que iam e vinham carregando sempre uma ou duas sacolas, o passo cansado e o olhar de quem anda sem ver. O porquê disso se pode deduzir do encontro que tivemos à noite na casa de K. e P., ela ensaísta e ele jornalista.

Conforme combinado, às 20h estávamos lá. Entramos e K. se desculpou por não ter bebida alguma para oferecer, contando que cada pessoa tem direito a apenas uma garrafa de vodca, quantidade suficiente, segundo ela, só para um polonês que não bebe nada. Assim, passamos logo à mesa, sobre a qual uma carpa já se encontrava servida nos pratos. Havia molho de maionese e um suco de maçã feito em casa. No gravador, uma fita tocava música americana que P., na impossibilidade de encontrar discos, gravava diretamente do rádio. Iniciado o jantar, ele nos faria saber que seu salário dava até o décimo dia do mês. O polonês médio ganhava 4 mil zlote, quando um ovo custava 10 e um quilo de maçã, 50; sua única meta era sobreviver, e a comida, uma ideia fixa. Horas para prover a casa e, se todo mundo carregava uma sacola, era porque qualquer oportunidade de comprar devia ser imediatamente aproveitada. Havia falta de tudo e K. dizia ser este o recurso do governo para enfraquecer a oposição, o sindicato Solidariedade, que arregimentava 10 milhões de pessoas enquanto o Partido Comunista contava com apenas 1 milhão de inscritos. Tratava-se de tornar a vida impossível e atribuir a culpa ao Solidariedade para desacreditá-lo, uma política que, no entanto, não vingaria, dada a tenacidade da resistência. Mas e se a URSS interviesse? Seria esperada por 36 milhões de fuzis (a população do país). A Polônia estava dividida, mas o inimigo a reunificaria. Havia munição suficiente para enfrentá-lo? Sim, durante três dias. E depois? Coquetéis molotov.

Não é preciso dizer o quanto a resposta de P. nos deixava estupefatos. Coquetéis molotov contra o exército russo! Bastaria entretanto evocar a história da Polônia para ver que aquela ideia, absurda da nossa perspectiva, ali era perfeitamente concebível. O exército polonês em 1939 não havia enfrentado com regimentos de cavalaria as divisões de tanques alemãs, empunhando o sabre contra as metralhadoras, tentando mesmo incendiar os tanques de aço com bolas de estopa incandescente na ponta de suas lanças? Heroísmo então suicida, mas que hoje parece eficaz. Não tendo limites, impõe limites aos outros, obriga a URSS a hesitar.

Desprovida de fronteiras naturais capazes de conter a política expansionista dos vizinhos, a Polônia está desde sempre sujeita à instabilidade territorial, realiza-se numa superfície incerta, sendo a identidade nacional simultaneamente indissociável desta incerteza e da certeza que a ela se opõe — a de uma resistência que desafia a morte e a razão.

Ser polonês é orgulhar-se de sê-lo, reconhecendo-se na memória de uma história trágica, é contrariar a realidade objetiva das relações de força através da insistência de uma verdade subjetiva — o desejo de fazer existir a Polônia. Daí a resposta de P., a do Solidariedade e a de Lech Walesa.

Terminando o jantar, apesar do racionamento da gasolina e do seu preço (20 zlote o litro), o amigo quis nos levar. No trajeto, a pedidos, estaciona diante de um monumento em memória do gueto judeu, tão imerso na escuridão quanto o resto da cidade. A 500 metros dali, a MILICJA mandaria parar. Alguma contravenção? Nenhuma, mas P. precisa mostrar os documentos e explicar por que se detivera.
Satisfeita a MILICJA, rumamos para o hotel, ouvindo o comentário irado de P. Pior do que o controle sobre os indivíduos era a má-fé do governo, que lhe dava um vale para 15 maços de cigarros como se ele pudesse adquiri-los; autorizava 300 gramas de sabão em pó, mas só o vendia em caixas de 1 kg, contra quatro vales, reduzindo assim a quantia para 250 gramas.

Nos fatos, a mesma ideia de que se era lesado pelo governo e talvez a chave da corrupção, na qual eu agora via uma forma de revide. O Estado driblava, o indivíduo transgredia.