A passagem da mulher-objeto para mulher-sujeito
Christl Brink-Friederici (1)
O sexophuro foi chamado por sua autora de “novela-novelo”. Recorrendo à origem (2) da palavra “novela”, que possivelmente remonta à forma latina de novus (a, um), termo aplicado a uma história nova, a classificação de O sexophuro dentro do gênero novela tem sua razão de ser, pois o livro conta uma história nova, ou a história de uma mulher “nova”, isto é, de uma mulher que se torna sujeito. No sentido tradicional, O sexophuro pode ser chamado de novela, pois o termo também é empregado para designar narrativas curtas.
Na verdade, contudo, o livro de Betty Milan é um romance, porque possui a faculdade essencial desse gênero: reconstruir o mundo com meios próprios, conforme uma visão particular original.
A estrutura
1. O plano narrativo deve ser considerado do ponto de vista extrínseco e intrínseco.
O plano extrínseco corresponde aos aspectos formais que apresentam, no Sexophuro, um tipo particular de textura, irregular e até fragmentária. O livro divide-se em quatro capítulos, intitulados: UM (O casamento), DOIS SE NÃO VÁRIOS (A infância, A adolescência…), ENTREATO (O aborto) e TRESVARIO OU MEMÓRIA DO FUTURO (A palavra). Em cada um desses capítulos, o desenvolvimento realiza-se através de textos muito curtos, fragmentos. Trata-se da história de uma mulher (ela), casada com um homem (ele) e da Outra (também ela), causa do divórcio do casal.
O plano intrínseco é representado pelo lado psicológico, metafísico, do romance que, no Sexophuro, é constituído pelos pensamentos da protagonista, desenvolvidos no espaço mental, parcialmente no subconsciente, em forma de uma espiral que corta o eixo do tempo cronológico.
2. O espaço do romance caracteriza-se pela pluralidade geográfica, conseguida através dos pensamentos e associações constitutivos da memória da mulher. Tende a se limitar ao espaço físico fechado: uma casa, uma sala, um quarto, um bordel, todos os ambientes adequados para os encontros amorosos mencionados no livro. O espaço só se abre para fora nos tempos da infância e adolescência da protagonista, pois é o espaço social da cidade – a rua, a ladeira, o empório – que então serve como cenário dos encontros amorosos, os primeiros.
São poucas as descrições do ambiente, mas, sempre que isso acontece, os objetos parecem criar vida própria, exercendo influência positiva ou negativa sobre a personagem, estabelecendo uma verdadeira osmose entre o meio e esta.
Pode-se dizer que o espaço predominante, no Sexophuro, é o psicológico, que, por sua vez, se aproxima e até se identifica com o tempo metafísico.
3. O tempo apresenta-se de maneira dicotômica, como no romance moderno em geral, dividindo-se em cronológico e psicológico ou metafísico. O primeiro é o tempo exterior, objetivo e mecânico, do relógio e da morte. O segundo, interior, representa o tempo subjetivamente vivido e incorpora todos os valores que fazem parte da vida.
O tempo interior, como forma de consciência e memória, promove-se como o único verdadeiro e determina, por essa razão, a relação de tempo no romance moderno, não só quanto à personagem, mas também quanto à estrutura. Os dois conceitos de tempo parecem irreconciliáveis, mas se aproximam e se complementam numa outra dimensão do romance: a do espaço.
Na literatura moderna, principalmente na prosa de ficção, a preocupação com o tempo tornou-se uma obsessão, e um dos maiores objetivos do autor é vencer o seu fluxo. O que se busca é a estagnação do tempo, tanto do cronológico quanto do psicológico. Vejamos como procede Betty Milan neste particular.
O tempo cronológico no Sexophuro é o do social por excelência e está representado pelo encontro amoroso. A história toda se desenrola durante o tempo desse encontro.
O tempo psicológico manifesta-se através do fluxo da memória da mulher. Isso acontece, pela primeira vez, quando, no terceiro capítulo, ela se lembra da pinturinha de São João – “quermesse, quentão e lua cheia” – que a leva involuntariamente a rememorar a vida passada. Trata-se aqui, na terminologia de Proust, de um momento privilegiado, ou, na de Joyce, de uma epifania, manifestação espiritual súbita, e, para Jack Lindsay, o momento de união entre o sujeito e o objeto na consciência do artista, momento de penetração iluminadora na realidade objetiva (3). Essa memória involuntária da mulher continua depois como memória voluntária, pois ela se deixa “levar pela lembrança”. Não importa que a memória funcione de maneira voluntária ou involuntária; só importa que o passado se transfigura e se torna parte do presente.
O tempo psicológico frequentemente serve para idealizar o passado e o futuro, para buscar uma felicidade perdida ou alcançar uma vida melhor. Isso não acontece no Sexophuro, pois a busca do tempo passado serve para analisar o tempo vivido. Por outro lado, o tempo do futuro é o da “loucura” e a escrita é a única perspectiva de salvação.
Considerado globalmente, o tempo psicológico – do fluxo do pensamento e da memória – movimenta-se em círculos e redemoinhos: “o tempo girando em torno de si mesmo, no torno infatigável da memória, remoinho…”. Sua tendência é, pois, a estagnação.
O romance atual tem um certo parentesco com a música no que se refere ao tratamento do tempo. Na música, existe a possibilidade de superar o constante fluir do tempo por técnicas como a repetição, a variação ou a simples emissão de mais de uma nota no mesmo ato, dando assim a ideia de simultaneidade. O romancista moderno, como o músico, procura dar essa ideia, alcançar a cada momento a qualidade de um nunc stans (4). É dessa busca que se trata no Sexophuro, pois aí o tempo narrado e o tempo da narração são praticamente congruentes, se não simultâneos. Por causa dessa estrutura temporal e da metaforização poética do discurso da protagonista, o romance de Betty Milan se aproxima ainda da poesia.
O que os autores contemporâneos pretendem transmitir para o leitor não são apenas técnicas novas, mas a impressão de uma atemporalidade que, por sua vez, relaciona-se com a eternidade. Noutras palavras, o romance moderno tem uma tendência a ser exemplar ou, como diria Jung, arquetípico, abordando questões eternas, como no caso do Sexophuro, que trata do enigma da sexualidade feminina.
4. Diretamente ligados às categorias de espaço e tempo são a função e o papel do narrador. No Sexophuro, quem conta a história é o narrador, na terceira pessoa do singular. É um narrador onisciente, que conhece toda a trama, sabe como as personagens reagem e pensam. Sua função é estrutural, na medida em que introduz e fecha a história; por outro lado, funciona como mediador entre o texto e o leitor. É dono do tempo cronológico e psicológico, manipula-os à vontade, mantendo-se contudo estreitamente ligado ao papel da protagonista.
No romance moderno, não se trata de contar uma história para divertir, e sim de objetivar o mais possível o assunto em questão. A figura que narra deve, portanto, mudar o seu ponto de vista, a fim de iluminar a partir de ângulos diferentes o assunto do texto. Isso é o que ocorre no Sexophuro, pois aí é a distância do foco narrativo que varia. Quando o narrador conta de maneira onisciente, o foco é distante das personagens e dos leitores; quando assume o ponto de vista da protagonista ou dos outros personagens, o foco se aproxima através da rememoração. Com essas variações, a autora tanto evita a monotonia quanto oferece perspectivas novas.
A linguagem
A autora opta por uma linguagem difícil, sofisticada, o que valeu ao romance a seguinte crítica: “Sua estrutura, uma colagem de fatos da memória, sem dúvida harmônica e interessante, tropeça na palavra usada com excessivo cuidado analítico, que complica a fluência da narrativa” (5).
Betty Milan não “tropeça” na palavra, ela cria a palavra, e não apenas esta, mas toda a linguagem, transformando a sucessão da escrita em estruturas simultâneas, através de três recursos técnicos: a montagem, o uso da morfossintaxe e o hermetismo.
Quando se folheia O sexophuro, a montagem imediatamente chama a atenção pelos tantos espaços em branco que separam os curtos trechos do texto. Nas X páginas do livro, há Y totalmente vazias, sem que a numeração das páginas se interrompa. Parece que a autora inverteu o processo de criação, que ela não partiu de um texto, mas das páginas em branco, tomadas como texto original ou história pré-verbalizada, e, só depois, verbalizou os seus pensamentos.
No nível morfossintático, a autora opta pela “não dinâmica” do texto, preferindo os verbos de estado e as estruturas sintáticas extremamente complexas. Vejamos isso através do seguinte fragmento:
“Cansada do marido para a amante, de si amarrada na fala dúbia em que ele insistia, a de amá-la e de precisar fora, saiu contar isso à Outra. Só o fez para ouvir o que mais não queria. A esposa acaso não sabia das outras todas anteriores? Imaginava ter sido sempre a única? E a Outra detalhou as várias histórias, exibindo com orgulho a nova cumplicidade. Até ser desbancada no ato mesmo de falar, dizer que de tudo ela própria não sabia. Ouvir, nesse dito, que ele driblava todas, fosse uma ou fosse outra.
Considerada, a Outra era qualquer. Vista, uma aura de desejo a envolvia. A aura dele nela, dela. Que estranho prazer o de olhar a rival e estar ali, no calor daquele fogo que a excluía.
Dali por diante, não restava dúvida, o marido a renegaria, mas na falta da esposa a Outra perdia terreno, a paixão que o enfeitiçava sendo a da alternativa, paixão de nenhuma Uma, alheia à culpa e à desculpa.”
O verbo que é, em princípio, a expressão de um processo, neste texto é menos importante do que o nome. A escritora usa sobretudo os verbos que exprimem um estado (ou mudança de um para outro estado), bem como as formas nominais do verbo (infinitivo, particípio e gerúndio), que, além do seu valor propriamente verbal, podem desempenhar a função do nome.
Os nomes-chaves do texto pertencem todos à categoria dos nomes abstratos (desejo, gozo, prazer, falta, dom, aura e paixão), expressando sensações, sentimentos e qualidades dependentes de um nome concreto (ou de um pronome). Disso resulta uma interdependência nominal semelhante à que existe entre os fios de um tecido.
No nível sintático, as orações são, em geral, curtas (ou, às vezes, extremamente longas, como é o caso do último capítulo, onde não há um único ponto final). A construção é complexa, formando estruturas cujas partes exercem funções diferentes e mantêm relações complexas entre si. Se fôssemos representá-las por meio de desenhos geométricos, como os diagramas-árvore, por encolcheteamentos ou decomposição e recomposição, pelo método de desfraseamento, deixaríamos patente sua complexidade. Assim, por exemplo:
cansada e
(ela) saiu |
do marido
de si,
contar isso a Outra a
|
O texto se espalha claramente no espaço e, com isso, cria uma impressão de simultaneidade, como ocorre na música. Na verdade, ele é extremamente musical, sobretudo pelo ritmo da frase, marcado pelas pausas e pela modulação (entoação). Isso pode ser verificado através da escuta do livro-cassete, Uma mulher, adaptação do Sexophuro, lido pela atriz Nathalia Timberg.
O hermetismo do texto resulta, no nível léxico, de neologismos, jogos de palavras, ambiguidades e ambivalências, provocadas muitas vezes pela falta dos nomes próprios das personagens. No nível da frase, ele é um efeito, por um lado, do comprimento e da construção complexa das orações, por outro, da pontuação moderna, frequentemente livre das regras tradicionais da língua portuguesa.
Tendo sido discípula de Lacan, a autora pode inconscientemente ter seguido a maneira de escrever do mestre, para quem “o hermetismo é de natureza metodológica, incorpora o equívoco e a distorção num discurso que resiste à compreensão imediata” (6).
As personagens
As personagens do romance agrupam-se em triângulos. O primeiro deles é o tradicional, formado por ela (esposa), ele (marido) e a Outra (amante). As personagens femininas representam, dentro da trama, a protagonista (ela) e a antagonista (a Outra). O segundo triângulo projeta-se no nível social, e nele temos ela (patroa), ele (patrão) e a empregada. O terceiro e último é o triângulo da família, pai, mãe e filha.
Ao longo do texto, as personagens ficam retidas dentro de seus triângulos, com exceção da protagonista, que, no último capítulo, rompe a forma hermética triangular e liberta-se com o auxílio da palavra. O movimento dentro dos triângulos é mínimo e se reduziria a quase nada, se eles fossem equiláteros. Também no nível das personagens, repete-se a impressão de estagnação, acentuada pelo fato de nenhuma personagem possuir nome próprio, serem todas arquétipos apenas designadas por substantivos concretos (mulher, homem, empregada, pai, mãe etc.) ou pronomes pessoais. No triângulo amoroso, o pronome “ela” torna-se ambivalente, porque pode se referir a qualquer uma das duas mulheres. O que se justifica, já que ambas trocam de lugar: a esposa descasa e se torna amante (a Outra), enquanto a Outra (amante) passa a ocupar o lugar de esposa.
Na literatura brasileira, o papel da Outra é da maior importância. Em ensaio intitulado A Outra e o culto da vingança (7), a própria Betty Milan classifica a Outra, a amante, como “figura central da mística feminina brasileira” e diz que ela é objeto de um culto da vingança, no qual a esposa se exercita desde o Brasil colonial. O concubinato era então a regra, e os senhores todos mantinham relações adúlteras com as escravas. Enquanto estas significavam o gozo, a esposa só existia para reproduzir a espécie e se vingava tão cruelmente quanto podia da Outra.
Os tempos não são os mesmos, porém, o culto da vingança ficou, porque o casamento continua a ser a saída para a mulher brasileira. “O que mudou”, conclui Betty Milan, “foi a relação da esposa e da Outra, não só porque esta hoje de fato ameaça o contrato, mas ainda porque a antiga dissociação entre função de reproduzir e gozo já não existe. A Outra deixou de ser símbolo exclusivo do gozo, tornando-se para a esposa o grande enigma, a outra em quem ela também se reconhece.”
O triângulo senhor-esposa-escrava do Brasil colonial continua portanto a vigorar, com algumas modificações: a escrava chama-se agora empregada (pois o trabalho manual é ainda considerado trabalho escravo) e a antiga cumplicidade senhor-escrava foi substituída pela existente entre a patroa e a empregada.
A importância da empregada no Sexophuro pode ser verificada pelo fato de aparecerem quatro delas ou uma única quatro vezes. O resultado é o mesmo, porque suas características são estereotipadas: a empregada humilde, submissa, sofredora e cúmplice da patroa; a supersticiosa, autoritária e defensora do território da patroa, que também é o seu; a companheira da patroa nas horas de aflição e a que adula o sexo oposto, embora seja vítima dele.
Aqui, cabe perguntar como podem patroa e empregada se entender tão bem. Talvez porque os valores modernos aos quais aspira a mulher da classe média não tenham ainda sido totalmente assimilados por esta, que assim tem afinidades com a mulher mais primitiva, cuja natureza telúrica serve como ponto de apoio emocional. Por outro lado, a empregada usa a patroa como alavanca para sua ascensão social. Ambas se voltam, consequentemente, contra o homem, que, em geral, dá motivos para a insatisfação da esposa e não se interessa pelas ambições sociais da empregada. A amante representa uma ameaça para as duas mulheres. Sendo uma rival da esposa, pode destruir o casamento e, assim, acabar com a relação patroa-empregada.
O percurso da protagonista
O sexophuro trata do percurso de uma mulher para deixar de ser objeto e se tornar sujeito da própria história. Não vendo saída para si no casamento, a personagem do romance se realiza exprimindo suas fantasias através da escrita e se entregando ao seu desejo no ato de rememorar a infância e a adolescência, os vários momentos em que se descobria através do corpo e do gozo.
O sexophuro é um romance sobre a passagem da mulher-objeto para mulher-sujeito, metamorfose que se realiza dentro da pessoa, de maneira incontrolável e quase imperceptível. Por isso, não pode haver e não há um desenvolvimento linear ou qualitativo. A mudança é repentina, e a metamorfose propriamente dita só se torna evidente no último capítulo.
Mesmo tratando-se de uma transformação interior, existem certos indícios exteriores de que esta pode ocorrer. Assim, na adolescência, a voracidade faz a protagonista se opor às convenções burguesas, porém, ainda lhe falta a coragem de rejeitar ou ignorar os obstáculos: “O namoro livre, contrariando as regras sem contudo de fato transgredi-las, o só contorno, a boca, os seios e as pernas, jamais o hímen”. Mas logo o sexo, “na recusa das convenções”, exige mais espaço, e a protagonista foge com o namorado para outro lugar, “onde se estaria a salvo do provincianismo que dava asas às más-línguas”. Durante o namoro firme, que antecedeu o casamento, e durante os primeiros tempos de casada, a protagonista se rebela, cometendo uma série de suicídios simbólicos. Essas tentativas de autodestruição explicam-se, segundo Melanie Klein (8), pelo masoquismo feminino, que funcionaria como uma forma de autopreservação do indivíduo. No caso do Sexophuro, os suicídios são uma maneira de autodefesa da protagonista contra a sua alienação no namoro e a desilusão no casamento.
A partir do casamento, fruto da iniciativa da mulher, a passividade masculina começa a se tornar evidente. Quem manda na casa é ele, mas “na cama, ao invés, quem dava a batida das horas era ela, o marido devendo aguardar iniciativas”. Quando o casamento acaba por causa da Outra, a esposa é quem dá o primeiro passo para a separação. Começa com a partilha dos bens, à qual o marido assiste petrificado “pois naquilo só via a demência, o diabo, sua danação”. Contrariando os hábitos, quem sai de casa é ela. Mas a irreverência não termina aí. Movida pelo ódio contra a amante e pela vontade de reconquistar o marido, lança mão de todos os recursos ao seu alcance, invade inclusive o domicílio da Outra, tornando-se cúmplice da empregada. Sobretudo, não desiste da ideia de sair vitoriosa da luta contra a adversária, insistindo no marido, “no delírio de ser sua mulher”.
Durante o romance todo, a protagonista é a detentora do discurso, a dona da fala e do silêncio, em oposição clara à dominação do discurso masculino. Ser dona do discurso não significa, entretanto, ser dona da palavra, a que ela aceita se sujeitar.
O amor, o desejo e o dom
O sexophuroé um romance erótico e sua grande cena de amor desenvolve-se quando a ex-esposa e o ex-marido, agora amantes, se reconhecem como são e não como parecem ser. O jogo entre ser e parecer é evidente. Pela primeira vez, o homem percebe a fragilidade e a resistência da mulher. Tudo nela é assimétrico e simétrico, tranquilo e intranquilo, conhecido e estranho ao mesmo tempo. Ele reconhece nela a ex-esposa e a Outra, mas também se reconhece e se assusta. Na verdade, o homem topa com o enigma do feminino.
A mulher, pela primeira vez, vê o homem como ele é verdadeiramente, “uma muralha trincada”, e não como ela queria que fosse, “… a baía serena que tanto imaginara”. Ambos se assustam com a imagem falsa que tiveram um do outro. Eram imagens-clichês da mulher bela e frágil e do homem forte e doce, imagens estereotipadas que em nada correspondiam à realidade. Na verdade, ambos estão danificados, prestes a desmoronar, são fracos e paradoxalmente fortes na sua fragilidade, na experiência do amor recíproco, tão oposto ao amor narcisista, de que há vários exemplos no Sexophuro – quando a protagonista reconhece o menino que fora, no primeiro amante que traz para casa, ou quando deseja ter o antigo prestígio de Laís e, como ela, ser leiloada.
O amor da protagonista pelo homem se transforma em paixão quando a Outra entra em cena. Inconformada com o divórcio, a protagonista se consome durante anos na ilusão de poder reconquistar o marido, ser a única capaz de satisfazer o desejo dele. Vive não só para se tornar a esposa novamente, mas ainda o objeto da paixão do homem.
A sedução da Outra é vista pela Ex como o efeito de um feitiço. A Outra acende o fogo da paixão no homem, cegando-lhe a vista pela costura dos olhos de um sapo. A partir disso, ele vive escravizado, no culto da amante, “na paixão da sua demanda” e “no gozo de satisfazer os caprichos todos, até mesmo o de alojá-la em casa”. A Outra quer dele “mesmo a sombra” e, por fim, não se conformando com a sua posição de amante, quer o casamento. O homem, que pretendia evitar uma escolha entre a esposa, que ele ama, e a amante, por quem está apaixonado, vê-se obrigado a eleger uma das duas. Casa-se e a Outra passa à condição de “Outra esposa”.
No momento em que o feitiço se desfaz e ele recupera a visão, fica “insensível aos vários subterfúgios: casa florida, mesa impecável, artimanhas vãs, como as tentativas todas de enredar o cotidiano em projetos futuros”.
Por se desejarem, a ex-mulher e o ex-marido novamente se aproximam. Mas que desejo é este que a tudo resiste? Ou melhor, o que é o desejo – a palavra mais repetida em todo o romance? Não se trata da satisfação de uma necessidade, e sim do desejo na acepção freudiana, que postula a indestrutibilidade por remeter a um sujeito sempre em falta. Noutras palavras, o desejo não é natural como a necessidade, ele é metafísico. Quanto ao sujeito, ele só o é porque foi constituído por uma falta fundamental, uma perda irremediável, a de algo que ele nunca teve.
Quando, no Sexophuro, a mulher se certifica de que o homem lhe dará prazer, ela quer satisfazer o desejo dele. Isso não é possível se não através do dom, que é entrega, altruísmo e transcendência do eu empírico.
Os estudos antropológicos do dom mostram-no condição do aparecimento do sujeito e da relação entre os sujeitos. Em muitas sociedades primitivas, é fundamental, quando se recebe um presente, destruí-lo, para indicar que o importante não é o presente, e sim a pessoa, o sujeito que o deu. Importa também que a prenda seja retribuída. Tal retribuição significa que o doador é reconhecido como pessoa. Através da doação, da destruição e da retribuição, os parceiros se reconhecem reciprocamente como sujeitos (e não como objetos, coisas).
Da mesma maneira se constitui a ideia do dom no ato sexual, e aí é essencial distinguir o prazer e o desejo. O prazer implica o risco de virar coisa. Já o desejo tanto constitui a mulher quanto o homem como sujeitos. Dado o risco da coisificação, o prazer precisa ser doado e destruído para que se recupere a dimensão do desejo, através da qual se constitui o sujeito.
No Sexophuro, a sexualidade também entra em cena mediante a figura do dom. A Outra, que simboliza o prazer, deve ser doada: “Amou-a para se entregar a ele como se fosse ela. Por que não? A outra através de si para o amante, que não lhe reconhecia o desejo de ser a única e no entanto muito a queria, esta única mulher que tudo permitiria, e cujo nome, antes do fim, para evocar o amor, ainda uma vez, ele dizia.”
Através do dom se desvenda o enigma da outra mulher, sua figura se desmistifica: “A outra, o mesmo fascínio das volutas, suas mãos alongadas nas unhas carmesim, o brilho fictício dos lábios onde pousou adivinhando-lhe o desejo já alhures, insatisfação sua e dela, toda carícia mencionando a que ainda não se lhes fizera, na volúpia de um mais e insaciável querer”.
A Outra, no Sexophuro, tanto representa a amante de carne e osso quanto o prazer. Por isso, a protagonista pode dizer que a relação entre esposa e amante é uma “questão de boa vizinhança no triângulo que existira e invariavelmente se reproduzia, fosse ela amante, ex, ocasião ou namorada, o amor enredando três, fiando o imprevisível previsivelmente…”
O título
Cabe agora examinar o título do romance. Segundo o depoimento que a autora nos deu, trata-se de um neologismo que lhe ocorreu vendo a palavra “saxophone”, escrita à moda antiga. Valeu-se do neologismo para o título, pois devido à letra p, a palavra sexophuro evocaria o puro e o impuro, dois adjetivos usados para qualificar a mulher, milenarmente objeto de veneração ou nojo, santa ou puta.
Na verdade, o romance inteiro é uma explicação do título, comentado pelas palavras poéticas da epígrafe:
mulher
o corpo em falta
um barco furado
um furo embarcado
Corpo, barco e furo são apostos ou sinônimos de mulher. O corpo feminino só existe em falta do outro, é um “corpo em falta”, como aliás o masculino, mas, para a mulher, o sexo se realiza através de furos. Quando o homem nela “embarca”, pode ir para muito longe e também pode afundar. Quanto a “furo embarcado”, dá ideia de gozo e isso também porque num dos fragmentos do texto se lê: “furo onde o gozo urgia e ela não”.
Durante anos a protagonista vive no fogo da paixão, na incessante tentativa de recuperar o homem. Vê-se finalmente “no descampado da memória”, sozinha, “sem a outra e sem futuro”, e, num momento de clarividência, reconhece a Outra como terceira, a ponta do triângulo amoroso que sempre existiu, existe e existirá.
O ato de renegar o homem e a própria desilusão levam-na a uma crise existencial. Já não sendo esposa, nem mãe, não tem lugar na sociedade. Nesse momento limiar, surge como um deus ex machina, a sublimação das paixões através da escrita, que não pode ser vista como a solução procurada no percurso da protagonista e tampouco como o desenvolvimento lógico do mesmo. Por isso, aliás, quando se refere ao ato de escrever, aquela afirma que está “sob o comando imperativo da palavra”, sujeita a algo que a obriga a usar a palavra para escrever sobre o próprio sexo. A escrita é, ao mesmo tempo, uma volta aos antepassados e à língua materna, “ocasião do gozo primeiro”. Escrevendo, a protagonista descobre uma liberdade nova, que tanto lhe dá autoconfiança quanto posição social; ela pode ser reconhecida pelo outro.
A autonomia adquirida através da escrita não é um valor moral, nem uma regra de conduta. Trata-se de um acontecimento ético no sentido grego da palavra ethos, isto é, da disposição de uma personalidade que se torna autônoma porque assume sua subjetividade em falta. Noutros termos, trata-se da conquista de uma solidão consentida, que torna a protagonista capaz de conviver com o outro, do qual nunca se esquecerá, porém de quem já não depende mais.
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1. A autora foi professora de Língua e Literatura Alemã da Universidade de São Paulo. Este estudo é parte de sua tese de literatura comparada no campo de sua especialidade: literatura feminina produzida no Brasil e na Alemanha.
2. A definição da palavra “novela” segue, grosso modo, a explicação de Massaud Moisés, em A criação literária, 6ª ed., São Paulo: Melhoramentos, 1973. p. 153.
3. Id. ibid.
4. Na introdução do romance A montanha mágica, Thomas Mann usa essa expressão, falando sobre os dois níveis de tempo.
5. Sonia Goldfeder, Veja, 9/12/1981.
6. Americo Vallejo & Lígia C. Magalhães. Lacan: operadores da leitura. São Paulo: Perspectiva, 1981. p. 51.
7. Betty Milan. “A Outra e o culto da vingança”. Folha de S. Paulo, , 14/12/1980.
8. Melanie Klein. Psicologia (Os efeitos das primeiras situações de ansiedade sobre o desenvolvimento da menina). São Paulo: Brasiliense, 1995. pp. 137-82.