A palavra na cura analítica
Betty Milan
Este artigo, do livro O saber do inconsciente / Trilogia psi,
saiu com igual título no Jornal da Tarde, São Paulo, 22/09/1979
Freud foi um mestre. Entretanto, dada a progressiva obliteração do sentido da sua obra, não fosse Jacques Lacan, o lugar de Freud teria permanecido vazio. Para se convencer disso, basta analisar o que há décadas se passa no lugar do ensino oficial da psicanálise, que hoje só serve para que daí se transmita uma técnica de um modo enfadonho, se cumpra um cerimonial que bem poderia ser comparado ao da neurose obsessiva. As instituições poderosamente organizadas nas quais Freud viu a garantia da transmissão da sua doutrina levaram a um formalismo decepcionante, desencorajando a iniciativa, apesar do sentido da descoberta freudiana.
Freud foi um mestre porque ousou valorizar o menor evento da vida cotidiana, afirmar e sustentar que o lapso era significativo, que sonhos ou trocadilhos revelariam, se analisados, uma verdade decisiva para o sujeito. Foi um precursor porque, contrariando a ciência da época, encontrou o sujeito onde ele estava e não era esperado, fundando assim um campo novo — o do saber psicanalítico, função exclusiva da palavra e da linguagem, pois, quer enquanto agente de cura, quer de investigação, a psicanálise só dispõe de um meio, a palavra do analisando, e a estrutura do sintoma psicanalisável é idêntica à estrutura da linguagem.
Dizer que a psicanálise é função da palavra implica a ideia de uma verdade só revelada através do discurso, o que, sendo evidente, não pode deixar de ser repetido, dados os desvios na teoria e na técnica.
Aliás, pode-se facilmente constatar nos meios psicanalíticos a aversão pelas funções da palavra e da linguagem, levando a modificações do objetivo e a técnicas fundadas na promoção do fenômeno da resistência, do imaginário e da contratransferência, fato que aponta para a tentação cada vez mais evidente no sentido de abandonar o fundamento da cura, qual seja, a palavra.
Nesse contexto, a prática visa sobretudo o ego, constituindo-se através da alienação no outro, é frustração em sua essência e se manifesta necessariamente através da agressividade. Resposta normal à frustração, esta é então desencadeada pela própria intervenção do analista que, denunciando a resistência, frustra o desejo e transforma a prática numa luta de prestígio ou num duelo de consistências.
Submersa nas análises das resistências, a psicanálise se esqueceu de que o ocorrido na sessão só concerne ao sujeito, na medida em que puder ser efetivamente assumido por ele enquanto eu, pronome da primeira pessoa do singular. E o analista, na impossibilidade de ouvir o desejo do analisando, de lhe dar a palavra de que ele precisa para se tornar um sujeito, tentará objetivá-lo, moldando-o segundo critérios inteiramente arbitrários.
Por um lado, análise das resistências; por outro, técnica de adaptação do indivíduo ao meio social. À procura de padrões normais de conduta, a psicanálise perdeu sua inspiração freudiana.
Seja como for, esta disciplina deve seu valor científico exclusivamente aos conceitos teóricos que Freud forjou, conceitos que, por terem sido mal criticados, conservam a ambiguidade da linguagem vulgar, produzindo equívocos. Daí a necessidade de uma crítica que, sem romper com a tradição terminológica, possa dar aos conceitos um sentido novo, incorporando o saber atual da linguística, da antropologia e da filosofia, crítica esta na origem do ensinamento lacaniano, do seu retorno a Freud. Situar a prática psicanalítica no campo conceitual em que ela de fato se inscreve, recusando a ideia de que a psicanálise é um ramo da biologia ou da psicologia, significa diferenciá-la da prática iniciática e operar segundo os princípios éticos estabelecidos por Freud, contrários a todo exercício do poder, implicando uma atuação que se faça exclusivamente por meio da transferência e nunca da sugestão.
Em função disso, a leitura de Freud é decisiva, sobretudo para os conceitos homônimos de noções correntes. É o que demonstra, por exemplo, a crítica que se faz à teoria das pulsões e à do complexo de Édipo, na ignorância do que, segundo o próprio Freud, há de mítico nelas, ou o que se diz sobre a pulsão de morte considerada uma pulsão destrutiva, identificável à motricidade, quando a pulsão de morte na verdade designa a repetição, que, podendo levar à morte, não é, de modo algum, sinônimo de destruição.
Freud, 1856-1939. Tantos anos se passaram desde seu falecimento e nós, brasileiros ainda não dispomos de uma versão das obras completas à altura do esforço do mestre, uma versão que não pode ser feita no contexto atual da política editorial, da falta de cuidado na escolha dos tradutores e de seriedade no encaminhamento de um projeto como o de traduzir Freud. Razão para imaginar que ficaremos ainda por um bom tempo à espera da obra que há quase um século inaugurou um campo novo do saber, um campo outro, o do inconsciente, campo através do qual Lacan não cessa de pôr em questão o saber do nosso século, as ciências humanas e a lógica, para obrigá-la a se firmar como a lógica do significante, não no sentido que a linguística empresta a esse termo, o do significante no seu apego ao significado, mas enquanto representante de um sujeito.