A Lição da França

A Lição da França

 

Este texto apareceu como
« A Lição da França ».
Folha de S. Paulo, 20/01/2015

A França estava no limbo – problemas econômicos e sociais graves. Com o 11 de janeiro, ela mostrou de novo a que veio. Vive la République! Ou seja, mostrou, de forma límpida e cabal, que é tão necessário punir os criminosos quanto recusar a paixão do ódio e lutar pela paz.

Setenta e duas horas e os terroristas foram eliminados. A tragédia do Charlie Hebdo foi na quarta feira. No domingo, quatro milhões de pessoas se manifestavam no país inteiro.

Na capital, a massa avançou precedida por uma primeira fileira em que estavam François Hollande (França), Angela Merkel (Alemanha), David Cameron (Reino Unido), Mahmoud Abbas (Palestina) e Benyamin Netanyahou (Israel). Superação momentânea espetacular das tradicionais inimizades. Uma era nova se anunciou, pois, quando se trata da liberdade, os franceses se mobilizam como ninguém.

Todos juntos por um Abajo la Muerte, palavra de ordem de uma das alegorias que desfilaram pela cidade e tanto requer a suspensão das hostilidades quanto a punição dos que são contrários à vida, pois a vida implica a liberdade de expressão. Sem esta, ou seja, sem a possibilidade da crítica, os totalitarismos vingam e vinga a repetição, que é a expressão da pulsão de morte.

Num ato de solidariedade nacional nunca visto, os franceses arregimentaram o mundo em torno do projeto de evitar o confronto, dando a todos a possibilidade de entender que o Islã não é sinônimo de terrorismo.

Por que não nos inspirarmos neste ato para combater no Brasil o terrorismo de que somos vítimas, o terrorismo da corrupção, que nos envergonha e nos humilha? Nem a ilusão de sermos o país do futuro ele nos deixa. Por que não seguir o exemplo da França para afirmar nas ruas que o Brasil não está condenado a ser um país corrupto, em vez de amargarmos continuamente as denúncias?

As Diretas já foram conquistadas com grandes manifestações. Diferentemente do 11 de setembro, a tragédia das torres crematórias com a qual o século XXI começou, o 11 de janeiro aconteceu para lembrar o quanto a palavra pode e quão preciosa ela é.

A repercussão no Brasil do ocorrido na França não é casual. Como os franceses, nós valorizamos o humor através de uma forma que é nossa, a da cultura pacifista do brincar, contrária a todos os dogmatismos. Não hesita em fazer Maomé ou o Cristo dançar samba. Quem se esqueceu do Redentor que Joãozinho Trinta introduziu na Marques de Sapucaí apesar da censura da igreja? Recoberta de negro, a alegoria entrou, denunciando a censura e o pouco caso das elites com os seguintes dizeres : MESMO PROIBIDO,ZELAI POR NÓS.

Como os franceses, nós brasileiros somos Charlie. O que nos falta é a coragem da mobilização, que obriga o governante a cumprir suas promessas, é a solidariedade para fazer valer o direito de não viver num país onde o dinheiro público é desviado e há mais vítimas de homicídio por ano do que durante os cinco anos da guerra do Vietnã. O que nos falta é a crença dos franceses na opinião pública e na palavra do povo. Não temos, ao contrário deles, uma República verdadeira, mas eles provaram que sem isso não há como ser um grande país.