A Irlanda de Joyce
Betty Milan
Este texto apareceu como a “A Dublin de Joyce”,
Folha de S. Paulo, 15/06/2002.
Dublin é o chofer de táxi que pergunta quando ouve você pigarrear: “Um sapo na garganta?”. A poesia de saída, através da metáfora saltitante do pigarro.
Você está no país dos bardos e não é por acaso que Yeats, Prêmio Nobel de Literatura de 1923, é irlandês. Você se lembra que Bernard Shaw, Samuel Beckett, Oscar Wilde, além de James Joyce, também são.
Num dos centros de Dublin, em Temple Bar, onde você desce, há um pub ao lado do outro. Por que não tomar uma Guinness? Você entra e topa com um homem cuja natureza não é a dos poetas. Porque nasceu predestinado ao copo e está ali sozinho para beber. O olhar de quem não vê o que olha, perdido. Você não entende por que o homem bebe, porém tem certeza, pela sua seriedade, que ele está cumprindo um ritual cujo significado ignora.
Talvez por isso sua expressão seja sinistra e faça pensar na história de John Joyce, pai de James Joyce. Depois de ter sido um rico funcionário público, ele se entregou ao álcool e arruinou a família — a esposa que ele engravidou dezessete vezes e os seus dez filhos que vingaram.
Em Dublin, tudo evoca Joyce, que se exilou, mas só escreveu sobre a cidade natal. A ponto de afirmar que, se Dublin fosse destruída, poderia ser inteiramente reconstruída a partir da sua obra. Tudo ali evoca o artista, porque a arte para ele não se separa da vida. Os lugares que Joyce menciona em sua obra são lugares que de fato existem.
Assim, a torre do primeiro capítulo do Ulisses, onde se passa a cena entre Stephen Dedalus, Buck Mulligan e Haines, é Martello Tower, construída em 1804 para defender a cidade e transformada em 1962 no Museu de Joyce por Sylvia Beach, editora do Ulisses. Nessa torre, Joyce (Stephen Dedalus) esteve com Gogarty (Buck Mulligan), um poeta amigo seu, e com Trench (Haines), amigo de Gogarty, que ameaçou o escritor com um revólver, obrigando-o a se retirar. Joyce viveu a experiência que inspirou o primeiro capítulo do seu grande romance, cujo cenário se encontra reproduzido no museu.
Outro exemplo da conexão estabelecida pelos contemporâneos entre a obra e a vida está no James Joyce Centre, uma casa tombada porque nela morou Maginni, professor de dança extravagante, que usava chapéu de seda, luvas amarelas e sapato de ponta fina e é citado seis vezes no Ulisses. Neste Centro, além das fotos da família do escritor e do mobiliário de sua casa, estão as fotos das pessoas de Dublin que inspiraram os personagens dos livros.
Quem vai lá se pergunta por que Joyce é tão popular. Sobretudo se considerar a dificuldade que o escritor teve para sobreviver e ser publicado. Dublinenses, que ele acabou em 1905, só foi editado — por sua conta — em 1911, e a edição, antes mesmo de ser distribuída, foi queimada por um desconhecido. Ulisses, publicado no ano de 1921 em Paris, foi imediatamente censurado na Inglaterra e nos Estados Unidos “por se tratar de obra pornográfica”.
A resposta para a popularidade pode ser encontrada na vida e na obra de Joyce, cuja única moral foi a independência — como, aliás, a moral de Dublin, que só pode se reconhecer nele. O escritor se valeu “do exílio, da astúcia e do silêncio” para produzir a sua catedral de prosa, com ela se impor ao mundo, se opor à Irlanda de que não gostava e ser depois aceito e cultuado pelos irlandeses.
A melhor prova disso é Bloomsday. Trata-se oficialmente do dia de Leopold Bloom, ou melhor, da comemoração do dia em que o personagem de Joyce vive e revive no Ulisses a sua história: 16 de junho de 1904. Oficiosamente, Bloomsday é o dia em que Joyce viu os olhos azuis de Nora. É a comemoração do encontro do escritor com sua musa, a mulher de Galway. Hoje, a festa é celebrada em diferentes países e em duzentas localidades, porque também é a data universal do amor que floresceu — that has bloomed.
Nesse dia, Molly, a esposa escandalosa de Bloom, também está no centro dos acontecimentos, e o seu célebre monólogo é rememorado nos teatros, nos auditórios, nos bares, nas ruas. Porque esta personagem, como nenhuma mulher do seu tempo, expressou livremente o desejo do gozo e não dissociou o sexo do resto da vida, entregou-se ao fluxo da sua imaginação, fazendo tão pouco das convenções sexuais quanto Joyce das convenções literárias.
Molly não cantou o amor, talvez porque na Irlanda a relação entre os homens e as mulheres — sempre às voltas com o medo da concepção e a proibição do aborto — não pudesse ser boa, mas fez a liberdade ressoar nos quatro cantos do mundo, dando-nos uma possibilidade que nós até então não tínhamos. Por exemplo, de confessar o adultério: “Vou pôr a minha melhor combinação e calcinha deixando ele dar uma olhada para fazer o pirulito dele ficar em pé e vou deixar ele saber que a mulher dele foi fodida sim diabo bem fodida até quase o pescoço e não por ele 5 ou 6 vezes sem desgrudar lá está a marca do esperma no lençol limpo eu não me incomodaria de passar a ferro pra tirar isso devia contentar ele se não me acreditar sente a minha barriga sente a menos que eu faça ele ficar em pé e meter em mim eu tenho a intenção de contar a ele cada coisinha e fazer ele fazer na minha frente servindo a ele tudo direitinho é culpa dele se eu sou uma mulher adúltera”.
Em Dublin, a festa começa uma semana antes do dia 16 de junho e se realiza com manifestações nas ruas, nas margens do rio Liffey, no cemitério, no James Joyce Center. Quem faz o tour organizado, que mostra a relação entre a obra e a cidade, descobre o quão decisivo é o conhecimento desta para entrar no Ulisses — que Joyce escreveu com um mapa ao lado e uma ideia precisa do lugar onde cada cena se desenrola. Percebe que o romance não é só para universitários, como queriam os opositores do escritor aos quais ele respondeu dizendo: “Se Ulisses não é feito para ser lido, então a vida não é feita para ser vivida”. O tour, que tanto pode ser de uma hora quanto de um dia, é uma grande viagem através da cidade e da obra.
— Nesta torre, Martello Tower, se passa o primeiro capítulo do livro, comenta o guia antes de um ator vestido de penhoar ler o que Buck Mulligan diz para Stephan Dedalus: “Você não foi capaz de se ajoelhar e rezar por sua mãe quando ela, já no leito de morte, te pediu isso”.
— Por aqui passou o funeral de Paddy Dignam, conta o guia noutro ponto.
Ou então:
— Na esquina desta rua, Bloom comprou o rim para o café da manhã de Molly e neste pub eles se encontraram.
Você ouve e se diz que os dublinenses contam a própria história contando a do Ulisses e que, graças ao livro, eles amam sua cidade natal. O amor os torna criativos na maneira de difundir a obra. Recriando, por exemplo, no cemitério de Glasnevin, o enterro de Paddy Dignam, cujo caixão aparece numa carruagem puxada por dois cavalos pretos e dirigida por dois cocheiros de fraque, que atravessa o cemitério exatamente como no romance, mas parando agora diante dos túmulos das pessoas que, no começo do século, inspiraram as personagens. Você assiste ao enterro de Paddy Dignam ouvindo o guia também contar a história dos revolucionários irlandeses — Robert Emmet, Daniel O’Connell, Charles Stewart Parnell — ou ouvindo o ator, que está vestido de padre, dizer os textos relativos ao funeral de Dignam. E você conclui que Bloomsday também é um culto irlandês dos ancestrais.
A comemoração mais impressionante é no próprio dia 16, que começa com um café da manhã em frente ao James Joyce Centre. As pessoas se vestem como na época de Bloom e os pratos servidos são os mencionados no livro. Mesmo quem não gosta de tomar cerveja e comer rim de porco logo de manhã é tomado pelos textos de Joyce ditos por atores de boina e bengala, ou por atrizes de saia longa e chapéu de palha, carregando cestas coloridas com frutos, folhas, flores e botões. Textos ditos séria ou satiricamente para perpetuar o espírito irreverente do escritor.
Last but not least, se você conseguir entrar no Centro, que fica apinhado de gente, e chegar no boudoir de Molly Bloom, você se surpreenderá com uma irlandesa de cabelos até o joelho, vestida com um camisolão branco e deitada numa cama para se despir de todas as suas vergonhas, ousando o célebre monólogo. Você quererá então, como ela, chamar a sua amada de flor da montanha ou dizer: “Ele me pediu perguntou se eu queria sim dizer sim minha flor da montanha e eu primeiro pus os meus braços em volta dele sim e puxei ele para ele sentir os meus peitos todos perfume sim e o coração dele batia como louco e eu disse sim, eu quero sim”.
No Bloomsday, a Dublin de Joyce é uma festa em que você vê o Liffey, um rio de águas turvas, cintilar. Porque a cidade é um rio de palavras, cujo som evoca o canto da sereia. Porque você participa do único banquete que não acaba nunca, o banquete encantatório de palavras.