A inocência de Pablo Picasso

A inocência de Pablo Picasso

Betty Milan
Este texto apareceu como
“O encontro de Picasso com Clarice”; Jornal do Brasil;
Rio de Janeiro; 25/11/1990.

Quem poderia duvidar de que Picasso fosse um artista? Mas o que é ser um artista? Recorro ao livro A descoberta do mundo de Clarice Lispector. A criança pinta como Picasso, mas não é arte o que faz, diz Lispector, acrescentando que aquela é inocente, enquanto o pintor se tornou. Noutras palavras, conquistou a infância, autorizou-se a fazer arte, pintar o sete, inventar moda, em suma, contrariando a expectativa, surpreender.

Picasso brinca, e, como a criança, se renova incessantemente. Mal começa uma de suas fases e já é outra que se anuncia. Em 1912, é O homem do bandolim, o cubismo rompendo as arestas do volume e abrindo completamente a forma. Nesse mesmo ano, surge a primeira colagem, Picasso introduz na superfície do quadro um objeto real: o assento de uma cadeira de palhinha. O que lhe importa é a ruptura criativa, e não o apego de que só resulta a repetição. Cubista? Por que não? Para logo entretanto não ser. Pintor? Para revalorizar a escultura e fazer no quadro nus de pedra. Moderno? Só para afirmar o clássico, reatualizar na fase dita neoclássica (1918-1924) os drapeados à moda antiga e os templos gregos.

Picasso não se deixou fisgar por nenhum rótulo, fiel à sua infidelidade, e por isso ousou ser pintor, escultor, cenógrafo, ceramista e também se valer de todas as matérias, pedra, bronze, madeira, papel, terracota etc. O que quer que fizesse trazia a marca de sua ousadia, de modo que ele podia fazer de tudo. Destemidamente se entregava ao desejo que o arrebatava. Só no Museu Picasso de Paris são 203 pinturas, 158 esculturas, 88 cerâmicas e mais de 3 mil desenhos e estampas — uma coleção dada ao Estado pelos herdeiros para pagar impostos sobre o patrimônio.

Tendo sido radicalmente contrário à seriedade sisuda dos adultos, jamais concebeu outra vida que não a da infância e não cansou de exaltar o país em que ele então viveu. Quando fez um Arlequim, pôs-lhe um chapéu de toureiro. Os olhos das suas corujas são rasgados como os de uma espanhola, e, para melhor sublinhar os narizes, os fez com arabescos, cantou a Espanha oriental. Serviu-se do próprio passado devorando-o e fez de novo valer a arte ibérica, romana, a da África e a da Oceania.

As artes todas para Picasso criar e também inúmeras mulheres. Olga Koklova, dançarina do Balé Russo, a primeira esposa. Ao seu retrato, o Museu Picasso consagra um lugar especial, informando que do encontro resultou a volta à figuração realista — no momento exato em que o cubismo começava a fazer escola. Maria Thérèse Walter, encontrada casualmente em 1927, modelo das obras então pintadas e esculpidas em Paris e Boisgeloup, da série de grandes cabeças de mulher em que reconhecemos o rosto oval da musa e as suas maçãs salientes. Dora Maar, a morena das unhas carmesim, fotógrafa das sucessivas etapas do quadro Guernica, executado em 1937 e destinado à Espanha “quando aí estivessem as liberdades democráticas restabelecidas” e portanto só entregue em 1981. Jacqueline Roque, dos olhos amendoados, que se torna a esposa e companheira dos últimos vinte anos, retratada como esfinge e repetidamente, ao longo do tempo, modelo da série As mulheres de Argel, inspirada no quadro de Delacroix.

Olga, Marie Thérèse, Dora, Jacqueline, entre outras mulheres sonhadas e cujo sexo Picasso exibiu — recusando a interdição de mostrar, insistindo no gozo do olho e se negando a ter medo do olhar, exaltando o sexo-fenda ou furo e desacreditando a fantasia da castração e o seu horror.

Picasso menino foi e nunca deixou de ser, entregou-se ao erotismo e depois ao grotesco nos retratos da última idade, pintou o gozo e ofereceu o riso inocentando-se mais e mais. Indissociável da criança, como mostra um quadro de 1969 no qual vemos o pintor que segura no colo uma criança que, por sua vez, segura-lhe o pincel. Indissociável, mas diverso, como afirmava Clarice Lispector — o que 1969 surpreendentemente só faz confirmar, já que o pintor aí tem dois olhos enquanto sua pequena parceira é cega de um, é inocente por não enxergar.

O artista certamente desconhecia Lispector, mas, como a escritora, sabia da parceria que lhe era indispensável, a condição sine qua non da sua arte. O mais é vê-lo e revê-lo, ler e reler a escritora, entregar-se a um e a outro, às suas criações, cujo sentido é vário.