A impunidade da justiça

A impunidade da justiça

Betty Milan
Este texto, do livro Isso é o país,
saiu como “A incrível impunidade da Justiça”,
Folha de S. Paulo
, 23/04/1982

Um pobre imigrante libanês que se chamava Jamil Muhmad Jbwai Jbara e era mascate. Não fosse o nome, a origem ou a profissão, a história possivelmente teria sido diferente. O fato é que, sem motivo justo algum, ele é internado no Manicômio Judiciário.

Certo dia, não podendo trabalhar devido à chuva, Jamil entra num bar e é aí procurado por um fiscal que lhe exige o pagamento do Imposto Diário de Licença para mascatear. Considerando injusto pagar a taxa, pois a chuva o impedia de expor as mercadorias e realizar a venda, Jamil se recusa a pagá-la. O fiscal chama um policial; Jamil é preso, processado e julgado. O juiz o toma por um doente mental e o absolve, mas, através de medida de segurança, determina sua internação no Manicômio Judiciário, onde ele passa grande parte de sua vida — até que o sobrinho vem ao Brasil para levá-lo à Jordânia.

Jamil foi vítima da Justiça de 1955 a 1978. Nesse ínterim, em 1968, outro desconhecido, Darci dos Santos, doente mental e, portanto, inimputável, é detido e condenado por roubo, permanecendo catorze anos ilegalmente no Presídio Esmeraldino Bandeira, do Rio de Janeiro — embora sua pena houvesse terminado em 1973 e apesar de um despacho favorável a ele, não cumprido por motivos ignorados.

Jamil, que não era doente, foi para o Manicômio. Darci, que antes de ser preso havia sido internado quatro vezes em hospitais psiquiátricos, foi para um presídio comum. Nos dois casos, o diagnóstico da Justiça era falso. Mas não foi ela, foram eles que pagaram por isso. Darci foi inclusive condenado à solitária. Mais do que isso, a pena se cumpriu e ele continuou detido.

Desautorizar a impunidade da Justiça é o primeiro passo para solucionar a crise, evitar os motins e tantas mortes. Enquanto não for possível saber de que lado está a delinquência, a lei não tem valor e é inútil aprimorá-la. Antes de mais nada, é preciso que todos, indiscriminadamente, estejam sujeitos à lei — o ladrão, o assassino, o policial, o delegado e também o juiz.

A Justiça pode errar. Sendo humana, tem suas limitações. Caberia, portanto, exercer maior controle sobre ela, impedir, por exemplo, que o diagnóstico de loucura fique a critério do juiz e que este possa deixar de cumprir a lei.