A guerra do Oriente Médio segundo Freud
Betty Milan
Este artigo, do livro O saber do inconsciente / Trilogia psi, foi
publicado como “Guerra eletrônica fascina telespectador. Freud
explica dor de escapismo”, O Estado de S. Paulo, 24/01/1991
O que pensaria Freud sobre a guerra do Oriente Médio? Para responder a esta questão, Betty Milan criou a entrevista imaginária que segue, com base em Ideias sobre a guerra e a morte, artigo escrito por ele em 1915 e que figura no volume XIV de suas obras completas.
Betty Milan: Quando a guerra começou, a sensação de catástrofe foi geral. As ruas silenciaram e o rosto das pessoas denotava grande desânimo. Por quê?
Sigmund Freud: O indivíduo que não é um combatente fica desnorteado na sua orientação e inibido nos seus poderes e atividades. Dois fatores são determinantes na aflição vivida pelos não-combatentes. Por um lado, a desilusão provocada pela guerra. Sim, porque a sensação é de que nenhum outro evento foi tão destrutivo, confundiu tanto as maiores inteligências ou rebaixou a tal ponto os que estavam lá no alto. A própria ciência perdeu sua imparcialidade! Por outro lado, afeta-nos a mudança de atitude em relação à morte que a guerra nos impõe.
BM: A desilusão em questão teria algo a ver com o sentimentalismo talvez?
SF: De modo algum. Não é preciso ser um sentimental para condenar a guerra, tanto nos seus fins quanto nos seus meios, e para desejar o fim de todas as guerras. Sabíamos que haveria guerras enquanto as condições de vida das nações fossem tão diversas, o valor da vida do indivíduo diferisse tanto e as animosidades que dividem as nações fossem motivos tão poderosos. Não obstante, esperávamos que o pior não acontecesse. Imaginávamos que as nações dominantes da raça branca, sobre as quais recaiu a liderança da espécie humana, cujo poder criativo abrange não só os avanços tecnológicos em direção ao controle da natureza, mas também os padrões artísticos e científicos da civilização, tivessem descoberto uma outra maneira de acertar os desentendimentos e os conflitos de interesse.
BM:O que o senhor está dizendo é o que nós verificamos nesta guerra. A gente fica perplexa de ver que uma nação que pode construir mísseis tão extraordinários, capazes de uma precisão tal, se envolva num conflito como este, se arme para uma guerra assim tão desigual e possa perpetrar um massacre. Saddam Hussein, o ditador do Iraque, é a outra face de George W. Bush, que faz matar e faz morrer os seus, apesar dos protestos no interior dos Estados Unidos.
SF: A oposição entre o indivíduo e os Estados salta aos olhos nessas circunstâncias. Em cada uma destas grandes nações há normas rígidas de conduta moral e o indivíduo deve se conformar a elas se quiser participar da comunidade civilizada. Tais imperativos exigem muito autocontrole, muita renúncia de satisfação instintiva. Os Estados civilizados consideram que aqueles padrões morais são a base da sua existência. Qualquer um que se oponha a eles topará numa resistência importante. Portanto, era de supor que o próprio Estado respeitasse estes padrões e nada faria que pudesse contrariar a base da sua própria existência. O cidadão horroriza-se, percebendo que o Estado proibiu-lhe a prática do mal não porque a desejasse abolir, e sim porque queria monopolizá-la. O Estado exige o máximo de obediência do cidadão, o trata na guerra como criança, deixando-o sem informação e, assim, indefeso contra uma reviravolta dos fatos. Manda-o para o front exigindo que ele sancione a convocação em nome do patriotismo.
BM: Nenhuma mãe cujo filho está no front ignora a impostura. Talvez por isso, pelo que elas poderiam dizer, não as ouvimos na televisão.
SF: Certamente.
BM: Voltando ao que o senhor dizia anteriormente, podemos deduzir que nós nos desiludimos pelo fato de termos idealizado o Estado?
SF: De fato, nós supomos que as grandes nações adquiriram tanta compreensão do que tinham em comum e tanta tolerância em relação às suas diferenças que já não estabelecerão uma identidade entre o estrangeiro e o inimigo. Imaginamos que a guerra não será declarada e que, se o fosse, seria a ocasião de mostrar que houve progresso desde que se proclamou na Grécia que nenhuma cidade ou liga de cidades podia ser destruída, nem as oliveiras cortadas, nem o provimento de água interrompido. Pensamos que a guerra deve se limitar a estabelecer a superioridade de um lado sobre o outro, evitar ao máximo o sofrimento, garantir completa imunidade aos feridos e afastar a população civil. Ora, nada disso se verificou. A guerra foi declarada e nós nos desiludimos.
BM: Verdade. Já no terceiro dia, Bagdá estava sem água e o que aconteceu com a população civil nós ignoramos. Desta vez, alega-se que o Iraque dispõe de armas químicas. Mas Israel ameaça com a bomba atômica e no Vietnã os Estados Unidos usaram napalm.
SF: É preciso fazer a crítica do nosso desapontamento. Nós bendizemos as ilusões, porque elas nos poupam de sentimentos desagradáveis e nos dão certas satisfações. Portanto, não devemos nos queixar se, de quando em vez, essas ilusões entrarem em conflito com uma parte da realidade e já não se sustentar.
BM: O senhor acha que estamos condenados à guerra? Que o mundo não melhora?
SF: A melhora depende certamente do trabalho de várias gerações.
BM: O ódio desencadeado no Oriente Médio deverá dificultar este trabalho. Qualquer um que teve um parente ou amigo morto não perdoa e transmite o desejo de vingança às gerações futuras. Até aqui em São Paulo, no bairro pacato do Bom Retiro, já se sentem os efeitos da guerra. Conta-se que um comerciante acordou preocupado com seus filhos que moram em Amã e ligou o rádio esperando o pior. Soube então que o Iraque havia bombardeado Israel e começou a dizer que era um homem novo, pois a notícia da bomba foi a melhor que ele recebeu desde 1948.
SF: O perigo da guerra é a repetição que ela aciona, a pulsão de morte.
BM:O senhor disse que a guerra transforma por causa da desilusão e por alterar a relação com a morte. Seria possível explicar essa alteração?
SF: Ninguém acredita na própria morte. No inconsciente, todo mundo está convencido da imortalidade. Quando alguém morre, costumamos atribuir o fato a uma causa conjuntural: acidente, doença, idade. Dessa maneira, desacreditamos a ideia de que a morte é necessária. E essa atitude em relação à morte tem um efeito negativo poderoso nas nossas vidas. A vida é empobrecida, ela perde o interesse quando não se pode correr o risco de morrer. Isso, apesar do mote dos almirantes de todos os tempos: “Navegar é preciso, viver não é preciso”. O resultado inevitável da supressão do risco é irmos procurá-lo na ficção, na literatura e no teatro. Nós aí morremos como o herói com o qual nos identificamos, porém, ao mesmo tempo, sobrevivemos a ele e já estamos prontos para morrer com outro herói.
BM:Seria por causa desta compensação que nós todos estamos fascinados pelas imagens televisivas da guerra?
SF: O que você acha?
BM: A televisão só faz menção indireta à morte, a caveira ela não mostra. O jornalista da CNN diz: “Olho para oeste e vejo o céu iluminado pelo fogo”. Quem escuta imagina a explosão, a bomba cair e se pergunta quantos foram atingidos. Uma pergunta cuja resposta a censura da informação interdita e, o que é decisivo, continuamos a ignorar. O mesmo ocorre quando a televisão mostra o efeito da bomba no alvo do míssil. O espectador vê o prédio ruir, mas não sabe quantos se foram. A informação funciona por assim dizer como um anteparo, ela encobre, e nós assistimos ao espetáculo de uma guerra sem mortos, temos consequentemente a ilusão de vitória sobre a morte. Os Estados Unidos são hoje uma superpotência menos pelos mísseis do que pelo elixir da vida eterna que nos oferecem. Isso significa que já não evitamos a morte por sobreviver ao herói com o qual nos identificamos, e sim por não morrermos. O engodo absoluto, pura ficção.
SF: É. Só que por um lado nós sabemos, não temos como negar, que as pessoas estão realmente morrendo e é isso que nos aflige. Já não podemos desacreditar a morte e ainda não sabemos como devemos nos comportar.
BM: Nós estamos condenados à guerra?
SF:A guerra não pode ser abolida enquanto as condições de existência entre as nações forem tão diferentes e sua repulsão mútua tão violenta. Por isso, eu pergunto se não cabe a nós nos adaptar à guerra.
BM: Não caberia antes a esta geração e às futuras recusar as barreiras impostas pelos nacionalismos? usar as riquezas disponíveis para melhorar as condições de vida no mundo inteiro e assim fazer a prevenção das guerras? valer-se da tecnologia para descobrir a cura da Aids, por exemplo, em vez de construir novos mísseis? Para isso, é preciso driblar a censura e divulgar a informação. Não fosse a fotografia da menina vietnamita napalmizada, que corria chorando perplexa com os braços queimados pendentes, Nick Ut, é possível que não tivessem ocorrido tantas manifestações nos Estados Unidos contra aquela guerra.
SF: O que você diz é verdade, mas eu não posso deixar de ser pessimista. Basta pensar na ênfase dada ao mandamento “Não matarás” para concluir que somos produto de uma série infinita de gerações de assassinos que tinham a paixão do crime no sangue. As conquistas éticas foram feitas ao longo da história humana. A expressão tão comum “Que o diabo te carregue” é um desejo de morte que existe no nosso inconsciente. Se agirmos segundo ele, podemos assassinar por qualquer coisa. O inconsciente é como o antigo código ateniense, que só conhecia a morte como punição para o crime.