A fé condena Galdino
Betty Milan
Este texto, do livro Isso é o país, foi publicado como
“Galdino lúcido e há sete anos internado no Manicômio.
Por quê?”,O Estado de S. Paulo, 15/05/1979
Aparecido Galdino Jacinto foi condenado pela Auditoria Militar por crime contra a segurança nacional e internado no Manicômio Judiciário. Pelo Jornal da Tarde, tornou-se público o que consta sobre ele no laudo psiquiátrico do Manicômio Judiciário, de 1978.
Após ter cumprido pena na Casa de Detenção, Galdino foi internado, em 1972, para cumprir medida de segurança, por ser considerado esquizofrênico.
Do motivo deste diagnóstico nada se sabe. O laudo referido não apenas não justifica como não autoriza o parecer dos psiquiatras, qual seja, o de que Aparecido Galdino Jacinto tem um déficit acentuado de crítica, ideias delirantes, místicas, caracterizando um quadro de esquizofrenia paranoide — quadro que, segundo os mesmos psiquiatras, “faz prever sua reincidência na infração penal que determinou a medida de segurança”.
O que os teria levado a assim diagnosticar e prognosticar? A inexistência atual de distúrbios sensoperceptivos, da memória, da inteligência, do pensamento e da linguagem, faz supor que a causa teria sido a experiência mística confessada por Galdino. Sobre isso, consta do laudo que, antes de ser benzedor, numa viagem de Goiás para São Paulo, Galdino ouviu uma voz que lhe dizia para ter cuidado. Desde então, deixou de trabalhar como boiadeiro e virou benzedor. A propósito dessa atividade, diz ele que já não pretende exercê-la, insistindo que, apesar do dom, não o fará por tê-lo prometido ao juiz.
Galdino interpreta, através da fé, a voz que ele ouve e nos coloca face a uma experiência religiosa. Trata-se de uma interpretação mística. Para afirmar que ela é delirante, teria sido preciso provar.
O parecer não justificado dos laudos psiquiátricos não autorizaria a ideia de que Galdino é condenado ao diagnóstico, como Joana d’Arc foi condenada à fogueira pelo simples fato de sustentar a própria fé? Ciente do que pode, dos limites impostos pela Justiça, Galdino afirma que já não benzerá, para neste mesmo ato reafirmar seu dom e fé.
Sabe-se que não foi por desacreditar da Igreja, mas por acreditar em Deus e em si que Joana d’Arc foi condenada. A quem lhe pergunta se queria se submeter à Igreja, ela responde: “Acredito que a Igreja não pode errar nem falhar, mas, quanto aos meus ditos e feitos, eu os relaciono inteiramente a Deus, que me fez fazer tudo o que fiz”. À tentativa de fazê-la renunciar aos seus erros e escândalos, ela opõe: “Se estivesse em julgamento e visse o fogo aceso e o carrasco pronto a pôr fogo, e eu estivesse dentro do fogo, não diria outra coisa e sustentaria até a morte o que disse no processo”. De resposta em resposta, Joana chega à que é considerada mortífera, afirmando que, ao abjurar, se danara para salvar a vida. Assim, por não renegar a fé, Joana d’Arc foi condenada.
Galdino, como todos os místicos, é subversivo pela fé. Esta a sua característica, e não a que a Psiquiatria arbitrariamente lhe impôs. Nada no caso legitima o diagnóstico. Por outro lado, o reconhecimento que tem Galdino dos limites que a lei impõe à sua ação desautoriza o prognóstico, ou seja, a reincidência na mesma infração. Nada, consequentemente, justifica a internação no Manicômio Judiciário — esta prisão sem julgamento de que a Justiça se vale por não poder condenar e a Psiquiatria abaliza para servir à Justiça, desservindo aos seus próprios fins.
Resta esperar que o efeito das sucessivas denúncias publicadas pelo Jornal da Tarde seja positivo; esperar da Justiça e da Psiquiatria que não haja reincidência.