A fantástica construção do carnaval

A fantástica construção do carnaval

 

Jacob Klintowitz (1)

O ano inteiro é Carnaval. Imaginar já é o Carnaval. Há a alegria do fazer, a felicidade de estar absolutamente engajado na montagem diária do mito. O segredo é a transformação do cotidiano numa festa. O gesto carnavaliza a realidade.

A gente trabalha o ano inteiro por um momento de felicidade, de rei, de pirata ou jardineira. Pra tudo se acabar na quarta-feira. E pra recomeçar na quinta-feira. Um novo gesto. O homem vive essa alegria de seu dia. Fazer o Carnaval é ser o Carnaval. Na fábula, a cada dia, ao contrário da trêfega cigarra, a formiga prepara o seu futuro. Aqui é diferente. A natureza da formiga e da cigarra é a mesma. São um só personagem. Metade formiga, metade cigarra. É um novo ser mítico. E é este ser que se imagina e se constrói. O combustível que impulsiona este ser é o desejo de transformação, e o seu fio condutor é a imaginação.

Maravilha das maravilhas, todo homem é Buda, declarou Buda ao sair do seu êxtase revelador. Maravilha das maravilhas, todo homem é imaginação. O livro Brasil, bastidores do Carnaval, de Betty Milan, descreve o processo de construção da realidade imaginária. É um livro feito por uma pequena equipe de extrema precisão. Ele foi preparado nos anos 80, 81 e 82, publicado em 1983 com o patrocínio da Eucatex. Agora, em 88, este livro foi revisado, aumentado e reeditado. Não é um volume sobre o Carnaval, mas sobre o seu processo de construção. Mais exatamente, é um livro que trata da gestação de um ser de imaginação. Quanto à forma, é um livro pobre. Poucas imagens, fotolitos pequenos, texto curto, 67 páginas. E são estas evidentes limitações que forçam o livro a alçar voo.

O caráter de mensagem é acentuado. Na falta de recursos, valeu a síntese poética. O caminho do livro é o contrário do percurso do Carnaval. Neste, são acentuadas as possibilidades de brilho, transparências e fantasias. No livro são acentuados o entendimento e a insinuação. O volume mostra como um grupo de intelectuais pode registrar e revelar fragmentos da preparação do Carnaval. Um livro de recursos limitados, feito de fragmentos, remontado segundo uma visão intuitiva e estimulante da percepção.

O volume não mostra o Carnaval, nem mesmo as situações pré-carnavalescas, as festas nas escolas, os enredos, a divulgação à busca de fundos. Brasil, os bastidores do Carnaval apresenta detalhes da construção de algumas imagens. E reforça essas imagens com declarações de pessoas diretamente comprometidas com a organização e a invenção do Carnaval. De tudo isso, o que resulta é um livro sobre a construção do sonho. E este sonho é a realidade do mundo, segundo os sonhadores.

Para Betty Milan, há alguma coisa da fantasia inicial do universo mágico imaginado pelo europeu. O Brasil construído pela fantasia do europeu. O Novo Mundo, reino encantado das esmeraldas, das pratas, das minas de ouro, das mulheres compassivas e geradoras da vida. Mas há também a fantasia do Brasil sobre o Ocidente: “… E se o Carnaval não fosse só o dia do esquecimento. Se ele fosse nossa memória? A repetição da fantasia que fez os descobridores, a de um dia entrar no Paraíso. E se o Carnaval fosse sobretudo a reinvenção permanente do Brasil para si e para os outros? (…) Repetindo uma fantasia do Ocidente sobre o Brasil, o Carnaval é simultaneamente uma fantasia do Brasil sobre o Ocidente, através da qual deixamos de ser objeto do desejo alheio para nos tornar sujeitos.”

Este volume faz refletir sobre o trabalho da artista Emilie Chamie, autora do projeto gráfico e da diagramação. Ela eleva o seu trabalho a uma manifestação transformadora. O livro adquire vida própria, desdobra-se no sentido de favorecer o saber e, diante dos olhos do leitor e com a ajuda das suas próprias mãos, através de páginas falsas e de imagem que surge de dentro da imagem, reorganiza uma instigante visão do mundo. Reconstrução da capacidade de ver e sentir. Emilie é mágica. Ela é dolorosamente exigente e deve ser, para as gráficas, uma presença tormentosa. E, ao final, ela justifica esse embate borrascoso com uma criação de rara beleza. A equipe é modestamente justa e as fotografias de Jorge Bodanski (maioria) e de Jorge Hirata oferecem um material de exata simplicidade. As sugestões nascem dessa elegância discreta. Fica explícito que o tema é a descrição do Carnaval como construção do imaginário. O ser é feito de imaginação. A imagem em ação. Fazer a vida dançar o destino. Amar a ilusão. Acreditar na história que inventamos. Carnaval, doçura de viver.

O compromisso real do Carnaval é com a fantasia. Há depoimentos de carnavalescos e responsáveis pelas escolas que afirmam isso. Vale a fantasia. Não há fidelidade histórica, mítica, factual. A única fidelidade é à fantasia e ao direito de criar. Estamos no reino do poder. Aqui, tudo é possível. Basta querer. Os seres se modificam, mudam de reino e de fisiologia, tornam-se sincréticos, compostos. Tudo segundo a necessidade de fantasia. E o desejo que gera a forma é a estruturação do desejo. É suficiente desejar. O homem é um Deus transformador.

(…) A nossa intenção não é a de trazer o Orixá em si, tanto que você vê, não tem nada de fita, nada de véu, nada de laço como tem no candomblé; estamos trazendo a riqueza do santo. Na sua essência, os santos são ricos (…)
Ney Ayan, Salgueiro, 1980

(…) O enredo deste ano? Dos Jardins do Éden à era de Aquário… O abre-alas representa o Éden, dezoito mulheres e um destaque masculino, a Ave do Paraíso.
Silvio Cunha, Vila Isabel, 1981

(…) antigamente, a ala das damas gostava daquele vestido de rabo de peixe colante; então, tenho no enredo (Das maravilhas do mar) um setor assim, porque lembra uma escola de samba antiga, e o rabo de peixe por si só já dá a ideia de sereia.
Viriato Ferreira, Portela, 1981

Realidade para o Carnaval não é uma reprodução da realidade visível. Ela não tem caráter naturalístico. E nem mesmo acredita no compromisso científico. Ao contrário, a crença implícita é de que é possível inventar uma realidade e que esta tem para os homens o caráter de realização. A realidade é o meu desejo. Eu faço o mundo. É a afirmação de existência das escolas e de seu enredo. A realidade não é outra coisa senão o Carnaval:

(…) Nunca uma japonesa poria uma perna de fora, mas eu fiz assim porque senão ninguém aceita o figurino. Tenho que estilizar, não é um japonesa autêntica, também se fosse perdia o valor, eu não precisaria existir.
Viriato Ferreira, Portela, 1981

Registrar simplesmente o que existe segundo os padrões convencionais anularia a ideia de Carnaval. Ele não precisaria existir. Os criadores consideram-se, como fica evidente nas declarações, agentes da imaginação coletiva. São eles que reinventam o mundo para satisfazer a sua comunidade. Joãosinho Trinta, o carnavalesco mais famoso da atualidade, afirma que, com a distância entre o trabalho e a moradia e as consequências naturais – principalmente o desligamento diário do morador da favela da vida diária da favela –, o Carnaval só pode continuar a existir, só manteve a sua tradição devido a este ser novo, o carnavalesco. O público aceita dessa maneira, igualmente, a presença dos carnavalescos e dos agentes de criação coletiva. E isso vale para o que desfila e para o que contempla. É óbvio que existe uma cumplicidade entre o que contempla e o que veste a fantasia. Este realiza a necessidade de ambos. O que é visto e o que vê. A fantasia é um acordo e não há distância fundamental entre o público e os artistas da escola. São partes integrantes do mesmo momento teatral. As partes escolhem e aceitam o reino da fantasia.

Brasil, os bastidores do Carnaval não trata do público. O estudo está concentrado no fazer de algumas peças e na possibilidade do entendimento intuitivo. Mas o público está pressentido em todo o livro. É uma atividade em si mesma fazer o Carnaval. Mas ele é feito para alguém. Quem faz sabe que haverá um desfile e um público. A comunidade é participante e a expressão é coletiva. Uma característica da arte primitiva. A autoria coletiva, a autenticidade e a integração comunitária. Felizmente, o livro não trata da utilização do Carnaval como veículo político ou de construção de imagem positiva para a atividade transgressora. A utilização de uma atividade espontânea para outras finalidades não a anula, mas demonstra a sua pujança. O foco do livro é tão exato e preciso quanto a sua equipe: ele trata da construção do sonho.

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1. Jacob Klintowitz é jornalista e crítico de arte, pioneiro na produção de livros sobre arte brasileira para divulgação no Brasil e no exterior. Autor de mais de duas dezenas de títulos na área, estão entre eles Maria Bonomi, gravadora (2000) e Aldemir Martins, o viajante amigo (2006). Resenha publicada no Jornal da Tarde, Caderno de Sábado, São Paulo, em 13/02/1988.