A defesa assassina da honra
Betty Milan
Este texto, do livro Isso é o país, foi publicado como
“Nossa imensa hipocrisia”, Veja, 15/04/1981
Lindomar Castilho é o sintoma de uma cultura que incita à vingança e produz, repetidamente, o assassinato de mulheres. Não fosse, por um lado, o argumento jurídico da defesa da honra e, por outro, a cumplicidade social, essa repetição não teria como se dar. Daí a importância decisiva das manifestações organizadas pelo movimento feminista.
O esquema de defesa de Doca Street e Lindomar Castilho foi idêntico. Nenhum tinha a intenção de matar. Cada qual matou. Depois, acusou a vítima de infidelidade. Primeiro, o criminoso procura se eximir da culpa, diz que agiu inconscientemente. Depois, procura se justificar, diz que foi traído. O procedimento é exatamente o mesmo, e o que ele revela é a nossa hipocrisia.
Se o adultério pode servir para justificar o crime, se a defesa da honra pode ser alegada, a vingança é uma conduta esperada. Prova disso é o sucesso da música Apesar de tudo (1978):
Não sei se te aliso ou te piso
Te enjeito ou te aceito com tantos defeitos
Bem vestida ou nua
Se me calo ou te xingo
Se me vingo e te toco no olho da rua
Se te agrado ou agrido.
LINDOMAR CASTILHO
Sem ser legítima, isto é, sem ser legal, a vingança é autorizada pela consciência social. Por que então invocar o inconsciente? Precisamente para que a justiça possa satisfazer uma sociedade que valoriza e incita à vingança.
Ainda que o inconsciente de Doca ou Lindomar tivesse determinado sua ação, é decisivo considerar que nada opusemos ao que havia de assassino e criminoso no inconsciente deles. Para modificar a consciência social, há que dissociar a honra masculina da fidelidade feminina. Enquanto a honra masculina depender do uso que a mulher faz do próprio corpo, o homem estará sujeito a ter de matar — e a mulher, a ter de ser vítima da tirania do cinto de castidade. A defesa da honra é um argumento jurídico medieval, que precisa ser suprimido para liberar os homens e as mulheres, liberá-los da paixão do ódio, do culto assassino e decadente da vingança.
Nessa medida, tanto o caso Doca quanto o caso Lindomar são da alçada do psicanalista, se este denunciar o jogo e se recusar a ser o suporte de um poder que, para se perpetuar, precisa fazer da mulher um bode expiatório, negando-lhe o direito ao corpo e à palavra, impondo-lhe, a tiros, o silêncio. Tomar o ocorrido como um caso clínico é eximir a justiça e a sociedade de sua responsabilidade, quando urge o contrário: apontar o sintoma, interditar o assassinato e desautorizar tudo o que identifique a mulher com a figura do Mal.
Pérfido é o que milenarmente sobre ela se diz e a ela se faz. “Há um princípio bom, que criou a ordem, a luz e o homem; e um princípio mau, que criou o caos, as trevas e a mulher”, diz Pitágoras. Nas leis de Manu, a mulher é um ser vil, que é preciso escravizar. No Levítico, é comparada aos burros de carga. O código romano proclama sua imbecilidade; o direito canônico a considera a porta para o diabo; e o Alcorão a trata com o mais absoluto desprezo.
Vil e desprezível, ela traz consigo a impureza, e Linneu (1707–1778), o eminente naturalista, afasta de si o “abominável” estudo dos órgãos genitais femininos, tal como o saber médico, enojado, afirma categoricamente que a carne se corrompe ao ser tocada pelas mulheres no período que antecede à menstruação. Objeto de um discurso perverso e, no passado, até mesmo do infanticídio consentido — o direito entre os árabes de matar a criança nascida menina —, a mulher continua a ser vítima.
Angela Diniz está morta. Eliane Aparecida de Grammont também, mas sua voz pulsa ainda na letra de uma doce cantiga:
Alisar sem pisar
Aceitar sem enjeitar
Agradar sem agredir…
Uma letra que se quer ouvida, cujas palavras são de ordem, exigindo-nos uma extrema firmeza no projeto de executá-las nesse país que ainda cultua a vingança, ensina a inimizade entre os homens e as mulheres e faz do sexo um sinônimo da intolerância.
Entrementes, é esperar que justiça se faça, para que o caso Lindomar, “el nuevo ídolo de las Américas” (segundo o disc-jockey mexicano Miguel Hernandes), “o cantor popular do ano de 78”, não se repita, para que o caso Doca não ressurja e possamos, enfim, nos livrar da infâmia de produzir e reproduzir esses assassinos — vítimas, também eles, de uma ideia insana de honra, que os obriga a matar.