A Copa e o mito do salvador
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Folha de S. Paulo, 24/06/2014
Há mais de uma década, Fernando Henrique Cardoso passeava no cais do Sena quando alguns franceses o abordaram, saudando-o por pertencer ao país do Rei Pelé. Ouvi-o contar isso num discuso proferido na prefeitura de Paris. O então presidente da República terminou a sua fala valorizando o fato de ser originário de um país de heróis. Pensei comigo mesma que seria melhor não precisarmos tanto deles.
Hoje, os franceses nos saudariam por sermos do país de Neymar, que está se superando e garantindo as nossas vitórias. Quando ele se prepara para o gol, parece o Moisés de Michelangelo. A expressão do seu rosto traduz uma determinação absoluta, ele existe para a bola e a bola para ele. A cumplicidade é tal que o gol parece mágico. A menina fala com Neymar e ele vai em frente com ela.
Quem assiste aos jogos da Copa atual pela televisão – mais de 3 bilhões de pessoas – delira e se ajoelha diante do jogador. Sabendo da própria força, depois de marcar o gol, Neymar levanta os braços e se volta para a torcida, incitando-a a se manifestar ainda mais. Lembra Joãozinho Trinta puxando a escola na avenida. Glorioso Joãozinho! Entrava na Marquês de Sapucaí convocando incansavelmente o povo a cantar.
Segundo os locutores franceses, o Brasil pode se tornar finalista se Neymar continuar em forma. Pode até ser. Seria, no entanto, a prova de que a improvisação vale mais do que o planejamento. A posição de quem está nas mãos de um único jogador é arriscada, ainda que ele seja genial. Depois de ter visto o jogo da França e da Holanda, dois países que primaram pelo espírito de equipe e foram vitoriosos, me pergunto por que a Seleção aposta tudo num homem só. Por sabermos improvisar ou por sermos viciados na improvisação?
O fato é que nós estamos nas mãos de Neymar. Herdamos de Portugal o culto do salvador e o renovamos ao longo da nossa história. Somos herdeiros dos sebastianistas e conservadores no pior sentido, porque o culto do salvador reforça a crença na magia. Com isso, nós deixamos de procurar para o país soluções fundadas na realidade.
Por sorte, quem assiste ao jogo e vê os estádios que foram construídos, enxerga a modernidade do Brasil. Quem vê o povo vestido de amarelo nas arquibancadas, com a felicidade estampada no rosto, esquece a realidade e quer ser brasileiro. Tomara nós possamos um dia apostar no país como nós apostamos no jogo. Querendo ou não, aliás, isso terá que acontecer.