A China ao alcance de todos

A China ao alcance de todos

Betty Milan
Este artigo é uma coletânea que reúne os artigos
“Ao nosso alcance a inimaginável China”, 24/12/2000
e “Pequim, símbolo de poder na nova China”, 31/12/2000,
publicados no Jornal da Tarde, São Paulo.


A CAMINHO

A viagem para a China começa bem antes da partida. Mas não como qualquer outra. No meu caso, começou com a impossibilidade de acreditar que eu realmente ia. Porque, em nosso imaginário, a China é inimaginável. Para entender isso, basta prestar atenção às expressões da nossa língua: nem aqui nem na China, ou só se for na China, ou ainda foi um negócio da China.

Ao dizermos que algo não é possível nem aqui nem na China, implicitamente afirmamos que uma coisa impossível para nós pode ser possível lá. Tanto o só se for na China quanto o foi um negócio da China implicam a mesma ideia. Isso significa que há coisas lá que sequer passam pela nossa cabeça. São inteiramente estranhas e, portanto, assustadoras.

As expressões da língua nos mantêm afastados, insinuando que a China nada tem a ver conosco, não há como lá chegar verdadeiramente. Daí a minha descrença na viagem que, por sorte, ousei fazer.

Foi depois de um encontro com Lygia Fagundes Telles que a viagem começou a se tornar possível. No saguão do Teatro Municipal de São Paulo, numa noite fria de julho.

‑ Você foi à China, Lygia?
‑ Fui.
‑ E do que você ainda se lembra?
Ela põe a mão no sobrolho como quem avista um continente e me responde:
‑ Dos homens. São tão bonitos! Os chineses são altos, bem maiores do que os japoneses.

Lygia me faz pensar no amante chinês de Marguerite Duras, que talvez tivesse olhos cor de jade. Com isso, já me leva para o chamado Império do Meio e, pouco depois, eu começo em Paris os preparativos para a viagem motivada por um convite para participar, em agosto, da Oitava Feira Internacional do Livro de Pequim com escritores e editores franceses.

***

Compro em Paris um bilhete Paris-Xangai-Pequim pela Air France por 700 dólares e deixo as passagens de Xangai-Xian e Xian-Pequim reservadas. Sendo de companhias aéreas chinesas, não há como adquiri-las na França. Nesse ato, a vendedora me fala da demora para a obtenção do visto e sugere que eu passe pelo despachante da Air France. Penso comigo mesma que os chineses não facilitam a vida do turista e aceito a sugestão. Depois, na China, me dou conta do meu engano. A dificuldade quem cria é o governo chinês, e não o povo, que tem mil e um recursos para facilitar o turismo de quem não fala a língua. Como, por exemplo, escrever para você, em chinês, o nome do lugar que você deseja visitar. Ou, melhor ainda, fornecer um cartão com os nomes dos pontos turísticos escritos em inglês e chinês para você mostrar ao chofer de táxi. Assim, quem leu o guia e sabe o que quer chega facilmente em qualquer lugar.

Resolvidas as questões práticas — passagem, visto, reserva de hotéis —, começo a estudar. Para logo entender que não há como me preparar verdadeiramente em tão pouco tempo. A China tem uma cultura de quatro mil anos que difere da cultura ocidental a ponto de conciliar os contrários.

Quem vai lá deve se preparar para se surpreender e suspender o julgamento até entender a diferença. E quem escreve sobre a viagem, sem ser um especialista na cultura milenar chinesa, só pode focalizar as próprias surpresas, transmitir as questões que a viagem suscitou.

Com um mínimo de roupa na mala, um guia de bom tamanho (Lonely Planet), alguns livros básicos (O pensamento dos chineses e A religião dos chineses, de Marcel Granet), um gravador, os remédios preconizados pelo guia (complexo vitamínico, antibiótico de largo espectro, sulfa e hidrosteril), um walkman e alguns CDs de música brasileira, eu embarco emocionada.

Objetivamente, minha viagem nada tem de excepcional. Mas, subjetivamente, se trata de uma proeza. Quinze dias entre pessoas cujos olhos eu só verei através de uma fenda e cuja língua eu não entendo. Não vou de camelo pela Rota da Seda e nem vou ter com o Grande Khan, ao contrário do que ocorreu com Marco Polo, porém, como ele, vou passar por um grande estranhamento.

No avião, só há chineses, e eu me dou conta do quão ruidosos eles são. As consoantes e as vogais parecem explodir no ar, as exclamações e as interrogações. Nada é harmônico, e eu me lembro de ter lido que a música chinesa clássica não se funda em encadeamentos harmônicos, que nela o importante é a variação melódica, os contrastes de timbre e os refrões.

A aeromoça passa os jornais e, apesar da ignorância da língua, eu pego todos. Para olhar os ideogramas e os pictogramas, ficar sabendo pela intérprete da Air France que as manchetes são em preto e vermelho, porque esta última é a cor da felicidade.

Peço à intérprete que me explique uma publicidade e percebo que os publicitários chineses se valem dos mesmos recursos dos ocidentais. Associando, por exemplo, um produto estrangeiro a uma imagem da cultura chinesa tradicional. No avião, a imagem em questão é a da favorita do imperador, e eu me digo que a China pós-maoísta sonha com a China imperial — ideia que se confirma quando vejo os chineses pagarem para tirar fotografia sentados num trono.

Meia hora depois da decolagem, as luzes são apagadas. Pudera. Em Paris são quatro da tarde, mas em Xangai já é meia-noite. Não tenho sono. Resta esquecer da defasagem horária e ler com a luz da poltrona. Se me forçar, além de não dormir eu perco tempo.

Às nove horas, todo mundo já dorme. Salvo um guri de olhos grandes que assiste à televisão. São olhos de jabuticaba, como talvez os dos chineses de que Lygia Fagundes Telles me falou. Na tela, Gérard Depardieu gesticula, e a escrita ideogramática do letreiro torna mais evidente o gigantismo de que ele padece.

Uma hora depois — dez da noite em Paris e quatro da manhã na China —, olho pela janela e vejo um céu estrelado. Sei, pelo telão, que o avião percorreu 5 mil quilômetros e agora atravessa a Sibéria. Posso não lembrar de Soljenítsin? do Pavilhão dos cancerosos?

Não tenho como dormir. O jeito é devorar o guia de viagem novamente até o dia amanhecer, os chineses comerem sopa de macarrão e o cheiro se tornar insuportável. Lembro de um conhecido me dizendo que, na China, tudo tem cheiro de alho. Acho que parece, mas não é. Seja como for, vou ter que me habituar com o cheiro e com os chineses chupando para comer. Porque, antes de mastigar e engolir como nós, eles chupam. Uma relação diferente com a boca.

Às sete da manhã, as televisões todas estão ligadas e a imperatriz da China é Julia Roberts em Erin Brockovich – Uma mulher de talento. Dou graças a Deus. Quem sabe eles um dia deixarão de lamentar o nascimento de uma mulher dizendo que é “a pequena felicidade” enquanto o nascimento de um homem é “a grande felicidade”.

Às sete e meia, a aeromoça distribui os formulários para os estrangeiros e eu me pergunto se eles vão mesmo me deixar entrar. Talvez porque ainda não acredite que vou descer na China. Como Freud não acreditou que as pirâmides do Egito fossem reais quando as enxergou.

XANGAI

No aeroporto, há uma entrada especial para os diplomatas e outra para os que são obrigados a ficar em quarentena. Penso na minha avó libanesa, dormindo sobre uma tábua em Marselha até tomar o navio em que viajou com outros imigrantes para o Brasil. Dessa tábua ancestral, a gente nunca se cura — fica marcada para sempre, fica com os olhos cheios de lágrimas quando desembarca na China. Quase um século depois.

No controle de passaportes, os franceses logo passam. Comigo, a coisa é diferente. O meu passaporte é examinado até que eu diga Brasil, Pelé. Diga sorrindo, é claro. Os outros podem ser sisudos, eu não. Graças a Deus, aliás. Sobretudo quando eu enfim cheguei à China.

Do aeroporto para o centro de Xangai, o que mais me surpreende é o trânsito. Possível será que os carros, as motos, os triciclos e as bicicletas ocupem o mesmo espaço nos dois sentidos? Que eles dobrem indiscriminadamente pela esquerda ou pela direita? Qual é a regra?

Percebo logo que a regra é avançar como der e que é necessário estar continuamente atento para não sofrer um acidente. Como o chofer é ótimo, logo me esqueço do trânsito para olhar a cidade, ver os edifícios que, pela forma e pela cintilação, me fazem pensar em Nova York. Nos últimos seis anos, foram construídas mais de 3 mil torres. É uma atrás da outra. Cor de ouro, cor de prata, com ideogramas gigantes igualmente dourados e prateados.

Xangai é indissociável da expressão “novo rico”, assim como as cidades da América do Norte e da América do Sul que eu conheço. Sem gostar do que vejo, eu me sinto em casa. Mas em Xangai há mais cartazes do que em São Paulo — como, aliás, nas outras cidades da China. Compreensível: os chineses se lançaram na economia de mercado sem saber o que é democracia. Portanto, estão mais sujeitos do que nós à selvageria do capitalismo.

Xangai tanto me faz pensar em Nova York quanto em São Paulo. Por se tratar de um gueto vertical, onde os edifícios mais suntuosos ladeiam outros inteiramente decadentes. O que difere é o cartaz publicitário. Pela escrita ideogramática e pelo tamanho gigante do texto.

Sei da importância da escrita na China, sei que os chineses usam o mesmo termo, wen, para ela e para a civilização, porém fico alegremente surpresa. Estou num país onde o valor da imagem não superou o do texto, que é sagrado. O imperialismo americano não tomou conta de tudo e a verdadeira muralha da China é a escrita.

Uma hora e o táxi está no Bund, o cais à beira do rio Huangpu, o verdadeiro símbolo de Xangai. Também o Bund, pela arquitetura neoclássica dos anos 30, lembra Nova York, e eu logo reconheço o Peace Hotel onde vou ficar.

Trata-se de um hotel do estilo do Copacabana Palace, no Rio de Janeiro, construído pelo multimiliardário Victor Sassoon, que enriqueceu com o comércio do ópio e reinvestiu todo o dinheiro em cavalos e no setor imobiliário de Xangai. Tem no topo uma pirâmide, onde há um restaurante com a melhor vista da cidade.

Tudo no Peace lembra um luxo antigo, o recepcionista que está de smoking preto e flor vermelha na lapela, o saguão de mármore, os lustres art déco. E, pelas cores, o verde e o rosa, que são as cores da China Imperial e também as da Mangueira, fazendo pensar que o Brasil é mesmo muito oriental, como escreveu Gilberto Freyre em Sobrados e mocambos.

Os pontos turísticos que pretendo visitar são três: o Bazar, Yuyuan e o Museu de Xangai. Começo pelo Bazar, porque já é hora do almoço e, segundo o guia, trata-se de um lugar ideal para almoçar.

Sucessão de pagodes onde todo o artesanato que se produz na China está à venda, ele é o império extravagante e multicolorido do kitsch. Tanto lembra as lojas da Liberdade quanto as da 25 de Março, em São Paulo, que vendem artigos de carnaval. Não sinto vontade de comprar nada. Porque não gosto do kitsch, que produz e reproduz imitações, é uma caricatura da arte, uma “ditadura do coração”, conforme diz o romancista checo Milan Kundera.

Olho rapidamente o Bazar e procuro o Lubolang, restaurante indicado pelo recepcionista do Peace Hotel. Pergunto em inglês a um e a outro até chegar lá. Trata-se de um restaurante imenso, decorado com os motivos tradicionais — a fênix da imperatriz e o dragão do imperador. Parece o Silver Palace, na Bowery Street, em Nova York.

Pedir o quê? Pato. O garçom diz que é demorado e aconselha o frango. Aceito e peço também um bolinho cozido no vapor como entrada e uma sobremesa. Para beber, chá de jasmim. O chá, infelizmente, tem um gosto esquisito. De terra. O bolinho no vapor é grande demais e eu não tenho como o abocanhar e engolir à maneira dos chineses. Mordo e, antes de escorrer pelo queixo, o suco do recheio me queima a boca. O frango no limão, além de frito, é açucarado. Um atentado à minha alimentação light. Quanto à sobremesa, foi servida junto com a entrada e eu, não tendo entendido que o doce na China não vem no fim, simplesmente a devolvi.

No jardim do Bazar, o mau humor logo passa. Feito no século XVI, na dinastia Ming, o Bazar foi bombardeado durante a guerra do ópio no século XIX, mas hoje está inteiramente restaurado. Trata-se de um labirinto onde, não sabendo da entrada e da saída, você é feliz, porque a cada passo há um convite à meditação: uma árvore que o jardineiro isolou, uma pedra, um jorro d’água. No jardim chinês, você perde a noção do espaço e do tempo. Tem com isso a experiência da eternidade.

Saio para ver o pôr do sol no Huangpu. Do último andar do Peace, onde Sassoon fez a sua residência, como fez Martinelli no topo do seu arranha-céu em São Paulo. E, do alto do Peace, enxergo Pudong, bairro que fica na outra margem do rio e é zona franca. Pudong tem torres cuja arquitetura dá sentido à palavra mirabolante e anúncios luminosos que parecem existir para evocar o passado de uma cidade cuja história é a do comércio e do consumo do ópio. São anúncios tão euforizantes quanto a droga a que Xangai hoje deve o seu esplendor.

Vejo o dia cair e a súbita explosão da luz e da cor, uma bola de estrelas douradas que incendeia o céu, uma flor de lótus gigante que desaparece na bruma da poluição. Penso no que o poeta André Breton, disse sobre a beleza em Nadja: “… ou é mágica circunstancial, explosiva, fixa, convulsiva, ou simplesmente não é”.

Já não sei bem onde estou. Xangai foi Nova York, foi São Paulo e agora, pela extravagância, é Las Vegas.

***

Adormeço sonhando com o rio Huangpu e acordo cedo para ver o Museu de Xangai, que não pode ser visitado em menos de quatro horas e bem merece um dia inteiro.

Foi construído em 1994 e subverteu a concepção museográfica tradicional. Tão impressionante fora, pela forma que evoca um antigo navio chinês, quanto dentro, pelas coleções.

Não sei se prefiro a galeria dos bronzes, das esculturas ou do jade — valorizado na China antiga pela riqueza e pelo poder que propicia. As três galerias merecem mais de uma visita, como a outra em que me detenho longamente — a da pintura e da caligrafia, duas artes que não podem ser dissociadas. Tanto porque a escrita chinesa antiga representava os objetos por desenhos quanto porque, em decorrência disso, ela não conta somente pela significação, mas também pelo aspecto estético.

Saio do museu no fim da tarde e vou direto para o Hyatt, um hotel do Pudong cuja recepção fica no quinquaségimo-quarto andar e cujo cimo, mais alto do que a Torre Eiffel, está boa parte do tempo escondido na bruma e oferece uma vista tão fantástica quanto o Hotel Peace.

O elevador, folheado a ouro, me impressiona menos do que as esculturas que vejo no bar do último andar. Na grande tradição do jardim chinês, a escultura é a pedra conforme a natureza a esculpiu.

Aí eu fico até a cidade inteira se acender e as luzes cintilarem como pirilampos no espaço mítico do Bund, onde as fortunas do ópio se fizeram. Posso neste momento não me lembrar do Baudelaire de Os paraísos artificiais, dizendo que a arquitetura do ópio “constrói, com os materiais imaginários do cérebro, cidades e templos que ultrapassam Babilônia em esplendor”.

Do Hyatt, eu volto para o meu hotel. Ao descer do táxi, sou assediada por uma mulher que carrega uma criança e pede esmola desesperadamente. Dou um yuan pensando que sina de mulher pobre é se deixar engravidar e passar depois a vida mendigando o leite da criança. Na China e no Brasil.

Vendo meu desconforto, o porteiro do hotel fala que ela é uma profissional. Acredito, lembrando do poema de Fernando Pessoa sobre o poeta que é um fingidor e finge completamente a dor que deveras sente. Como o poeta, a mulher sente, malgrado o profissionalismo obrigatório.

***

Último dia em Xangai, ou melhor, última manhã. Vou ao Templo do Buda de Jade, um dos raros templos budistas da cidade.

Construído entre 1911 e 1918, ele abriga um Buda impressionante, de dois metros de altura, que foi levado da Birmânia para Xangai, via Tibet, pelo mesmo monge que depois fez o templo. O Buda está sentado e pesa uma tonelada. Por causa das pedras preciosas nele incrustadas.

No espaço do templo, há muitas lojas cujos vendedores saem à porta para chamar quem chega. Valem-se do culto para comerciar. Porque na China talvez não haja maior culto do que o do comércio. Daí a razão pela qual tudo, absolutamente tudo, pode ser negociado.

Terminada a visita, volto para o hotel, pagar a conta e pegar as malas. No aeroporto, novo controle de passaporte. Mais uma vez, os franceses passam rapidamente, eu não. Tudo o que foi negativo então me ocorre: a dificuldade para obter o visto, a ignorância das línguas estrangeiras na China, a impossibilidade de pôr na boca uma água qualquer que não seja mineral, comer verdura que não tenha sido cozida ou fruta que não tenha sido descascada por mim, o cheiro de alho e o gosto amargo na boca…

XIAN

Na antiga capital imperial da China, o trajeto do aeroporto para o hotel não é propriamente animador. Vejo uma usina nuclear que fumega como em Cubatão, imóveis decadentes e uma casa de trogloditas – uma caverna.

No centro da cidade, como no século XIX, um grande número de triciclos, ônibus, caminhões e carros em péssimo estado ultrapasssando-se pelos dois lados. Nas paredes da cidade, mais anúncios do que em qualquer outro lugar. Percebo agora que a China se lambuza de publicidade. Como criança que nunca comeu melado. Poluição sonora e visual. Gente sentada na calçada, em cima de um jornal ou de um banco improvisado com quatro bambus.

Sei que não faz sentido me perguntar se valeu a pena atravessar os continentes, mas, de repente, é isso que eu faço.

Por sorte, o Hotel Hyatt de Xian é ótimo e eu acordo bem.

***

Quem vai a Xian quer ver o exército de soldados de terracota enterrado no mausoléu de Qin Shihuangdi, datado de 2 mil anos, e tão famoso quanto a Grande Muralha. Mas prefiro deixar isso para o dia seguinte, quando já estiver mais integrada no lugar e em melhores condições de aproveitar a experiência. Inclusive porque pretendo ficar o dia inteiro no mausoléu e ainda tenho que reservar o táxi para isso.

Assim, aproveito para visitar o Museu de História do Shaanxi, considerado um dos principais museus da China, com bronzes das dinastias mais antigas — Shang e Zhou —, com objetos funerários da dinastia Qin e peças de artesanato das dinastias mais recentes — Tang, Ming e Qing.

Não tenho como não comprar uma cópia do mais famoso bronze da dinastia Han, o cavalo a galope, um fato que interessa contar pelo modo como a compra se passa.

Vejo o objeto e pergunto o preço. São 1.200 yuan, responde a vendedora. Percebendo que eu me desinteresso, ela acrescenta: — Você é hoje a minha primeira cliente e portanto é 1.100. Como eu não respondo, ela abaixa para 1.000 e depois para 900. Ouvindo esse número, digo que vou pensar e saio do museu. Duzentos metros e a moça me puxa pela manga da blusa: 800 yuan, 100 dólares. Por me dar o valor em dólares, ela me convence e, apesar do peso do cavalo, eu já não hesito.

Compro menos por querer o maravilhoso objeto do que por não ter como resistir à compra. Noutras palavras, ela me seduz e eu cedo. Faz isso na grande tradição do comércio chinês, me dando a ilusão de que, por ter negociado, eu consegui um preço irrisório. Ainda mais astuciosa do que os comerciantes do Oriente Médio.

Depois do Museu do Shaanxi, vou ao Pagode dos Gansos Selvagens, construído em 652 no estilo Ming para abrigar os textos budistas trazidos da Índia pelo monge Xuan Zang, o tradutor dos mesmos. A arquitetura justifica a visita, que também pode servir para meditar sobre a importância do texto na China.

Do pagode, sigo para o centro da cidade, onde vejo cenas intrigantes. Um menino que se agacha para fazer pipi como se fosse menina. Porque na China a calça das crianças é aberta no meio. Uma mulher que se senta de pernas abertas na calçada para tomar sorvete. Talvez por causa da posição do lótus da tradição budista. Sentados a uma mesa, os adultos — homens sobretudo — jogam baralho ou dama na rua. Exatamente como se estivessem em casa. Ou porque aí não haja lugar para o jogo, ou porque na China a oposição casa / rua não exista. Seja como for, o convívio parece extraordinário e as crianças estão sempre presentes. No colo da mãe, brincando com outras crianças ou com os adultos. Sempre sorrindo e felizes.

***

Terceiro dia em Xian. Vou enfim visitar o exército de terracota de Qin Shihuangdi, o primeiro imperador da China, entronado em 246 a.C. para unificar o país, impondo a moeda e a escrita únicas.

A fim de realizar os grandes projetos do seu império, Qin Shihuangdi instituiu trabalhos forçados. Foi tirânico. Consta que os palácios do seu mausoléu tinham paredes incrustadas de pedras preciosas e que os seus construtores foram todos enterrados vivos para não revelar seus segredos.

O exército de terracota foi descoberto em 1974 por camponeses que cavavam um poço e casualmente encontraram uma fossa com milhares de soldados de terracota. Depois, acharam mais duas fossas. A primeira mede 210 metros de leste a oeste e 60 metros de norte a sul. Tem paredes que formam os corredores, onde ficavam 6 mil guerreiros, entre soldados, arqueiros, oficiais e generais. A segunda fossa continha mil guerreiros e a terceira, que parece ser o posto de comando das outras duas, 68 soldados e uma carruagem.

O que mais surpreende é o realismo das esculturas e o fato de cada uma ser inteiramente diferente da outra. Os homens, chineses ou mongóis — com os olhos puxados ou não, os bigodes para baixo ou para cima —, são todos belos, porque eram escolhidos em função do seu aspecto físico.

Depois do primeiro impacto, as questões se multiplicam. Como foram feitas as esculturas e como é possível que sejam todas diferentes umas das outras? A resposta para essa pergunta, eu a encontro falando com um guia do lugar. O tamanho delas varia de 1m70 a 2m10, e cada uma, apesar de oca, pesa aproximadamente 150 quilos. São diferentes porque foram feitas por diferentes artistas e, de um para o outro, o molde diferia.

Com a arma que os guerreiros seguravam na mão, o que aconteceu? O mesmo guia explica que, depois da morte de Qin Shihuangdi, as armas foram roubadas por seus inimigos.

E por que os guerreiros todos são tão femininos, tão sorridentes? Essa pergunta fica sem resposta. Resta olhar maravilhada para os homens de terracota que, pela fisionomia, fazem pensar nos homens da rua — dos quais, aliás, aqueles são os ancestrais imaginários.

E as perguntas continuam a aflorar: O que levou o imperador a imaginar o exército de terracota? Como pôde concebê-lo aos 15 anos e depois passar 38 anos, o resto da sua vida, executando a obra imaginada?

Indago e concebo algumas hipóteses. Para os chineses de então, a esta vida se seguia outra, subterrânea, e o imperador não quis deixar de ser, na segunda vida, o que foi na primeira. Fez o exército de terracota porque só através deste podia se imortalizar como imperador.

Seja como for, sua obra expressa de forma hollywoodiana o desejo de ser imortal. E, de tão enigmática, torna inesquecível Qin Shihuangdi, que foi o primeiro imperador da China por ter unificado o país, mas ainda porque soube fazer vigorar o enigma, um dos recursos privilegiados do poder.

PEQUIM

No aeroporto de Pequim, as malas chegam pelas esteiras rolantes com incrível rapidez e o carrinho está ao alcance da mão. No caminho para o centro, vejo avenidas e prédios que, pela monumentalidade, tanto evocam Moscou quanto Nova York. Os carros são luxuosos, e os cartazes de ideogramas, lindos. Como o trânsito é organizado, tenho a sensação de que mudei de planeta.

Pequim é a cidade do poder e da representação, da ocupação ritualizada do espaço e do refinamento. Indissociável da Muralha, da Cidade Proibida e das palavras concubina e mandarim.

Por isso tudo, ela também é cosmopolita. Percebo que os pequineses são mais abertos para o estrangeiro pelo chofer de táxi que ouve rádio em inglês e pelo porteiro do hotel que, não tendo entendido a palavra magasine (loja), traz um papel e me pede que a escreva.

***

A cidade de Pequim tanto é a da Praça Tienanmen (da Paz Celestial), onde está o Congresso, quanto a da residência imperial e dos bairros labirínticos, onde os mais pobres moram em casas sem banheiro, o hutong.

Em Tienanmen, o que mais impressiona é a imensidão do espaço, a monumentalidade dos prédios. Nem o pôr-do-sol, que me faz lembrar da Bahia, nem os papagaios, que os meninos soltam incansavelmente, humanizam a praça, pois a sua concepção arquitetônica serve a massa e desserve o indivíduo. Parece destinada a lembrar que, na China, só a massa importa e para o indivíduo não há lugar.

Apesar da presença das pessoas, tenho a sensação de que estou num deserto e eu me digo que o comunismo chinês foi megalômano, além de não ter sido realista. Porque não há nada mais indiferente à realidade do homem do que a Praça Tienanmen. Tanto pelo cansaço que o tamanho desmesurado acarreta quanto pela quase impossibilidade de sair dela. Não há passagem subterrânea para atravessar a rua que a ladeia e os carros não se detêm na passagem destinada aos pedestres. A palavra de ordem é esperar até que seja, enfim, possível. Um imperativo que os chineses aceitam por causa do comunismo ou do budismo?

O fato é que na China todo mundo espera. A impaciência é contrária à cultura deste país que ou se modifica para se tornar capitalista ou inventa um capitalismo que não seja o do time is money.

***

No dia seguinte ao da chegada, vou à Grande Muralha e ao túmulo dos Ming, que fica no caminho. Aí, o que mais vale a pena é a Via Sagrada Principal, que os turistas geralmente não visitam e onde a gente só entra pela contramão.

Vale a pena pelas esculturas, pelos mandarins e pelos mais belos animais reais e imaginários. Todos dispostos numa aleia de chorões, cujos galhos não alcançam o chão, ao contrário do que ocorre no Brasil. Uma aleia que eu atravesso ouvindo o canto ininterrupto das cigarras, me dizendo que nenhum zoológico é mais bonito e Pequim também merece ser vista pelas crianças.

Do túmulo dos Ming, o táxi me leva até a Grande Muralha, a reputada estação de Badaling, a 70 quilômetros de Pequim, onde eu desço para subir de teleférico (telecabine) até o ponto mais alto e voltar depois andando para o estacionamento.

Já da telecabine eu avisto a muralha. Como serpente na paisagem. Ainda que eu já soubesse o que ia ver, a emoção me toma. Também porque o guia diz que foi construída com terra e com os cadáveres dos que morreram na empreitada. E, diante desse símbolo maior da nação chinesa, feito com o suor dos operários e dos prisioneiros políticos, é o poema de Pessoa que me ocorre: “Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal”.

No alto, eu me detenho na paisagem semiencoberta pela bruma e contemplo a serpente de pedra, que agora reflete a luz do sol. Impressiona pensar que ela vai da costa oriental até o deserto de Gobi, que a construção durou 2 mil anos e não foi interrompida, apesar de nunca ter impedido as incursões dos nômades.

Essa muralha, que não serviu à sua finalidade, é a evidência de que o poder não pode prescindir do símbolo e de que a China se estruturou continuamente em torno do poder. Desde Qin Shihuangdi, o primeiro imperador, até hoje.

Outro símbolo do poder — que tanto precisa da exibição do limite quanto do segredo — é a Cidade Proibida, residência dos imperadores da dinastia Ming e Qing.

Vejo primeiro esta cidade andando à sua volta. À noite. Ora olhando o guarda passar com um mesmo passo militar, ora ouvindo a mais doce das flautas.

Vistos de fora, os pavilhões parecem carros alegóricos da Marquês de Sapucaí, e eu constato que as cores de todos eles são o verde, o rosa e o ocre — as três cores imperiais.

O passeio mostra que a Cidade Proibida é imensa e eu deduzo que o tamanho da Praça Tienanmen não é só uma expressão da megalomania comunista. Tem a ver com a própria alma chinesa, que produz e reproduz espaços infindáveis, como aliás o do próprio país.

Visitar a residência dos Ming e dos Qing é passar de um a outro pátio, de um a outro pavilhão, de uma porta a outra. Sempre vendo tetos cor de ocre que lembram o Oswald do Manifesto da poesia pau-brasil: “A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos”.

Em suma, é fazer uma travessia poética, ora olhando os pavilhões onde o imperador vivia com a esposa e as concubinas, ora os outros, onde quem imperava era Cixi, a subconcubina que se tornou imperatriz, driblou todas as regras de sucessão para ficar no poder até a morte e é mais cultuada hoje na China do que o próprio Mao Tsé-Tung (1893-1976).

E fazer a visita também é atravessar jardins de ciprestes onde os imperadores compunham poemas e a flor de lótus brota exibindo-se com pétalas de seda.

Quem prestar atenção ao nome dos lugares será por eles acalentado: Hall da Suprema Harmonia, Palácio da Pureza Celeste, Sala da Potente Fertilidade, Sala da Tranquilidade Imperial. Nomes que, sugerindo a felicidade, não impedem que se imagine a infelicidade gerada pelas intrigas palacianas, da corte, das esposas e das concubinas.

Para saber da história detalhada, o melhor é alugar um áudio na entrada da Cidade Proibida e fazer a visita escutando. Quem puder deve começar cedo e voltar no dia seguinte. Trata-se de um ponto turístico tão concorrido quanto a basílica de São Pedro em Roma.

E Pequim ainda tem muitos templos e parques.

Dos templos, o mais impressionante é o Templo do Céu, onde os imperadores das dinastias Ming e Qing faziam sacrifícios rituais para que as colheitas fossem boas.

Mil e uma razões para ir lá. A arquitetura. As escadarias decoradas com um baixo-relevo mirabolante — dois dragões sobre as montanhas e os oceanos. Os sinos e os tambores com os quais os chineses marcavam a hora.

Dos parques, prefiro o último que visito, Beihei, onde os chineses vão para ser fotografados como imperador ou imperatriz num faustoso trono. Porque, apesar da revolução, a maior das Chinas continua a ser para eles a China imperial.

Em Beihei, um calígrafo excepcional escreve nos ladrilhos com um pincel molhado na água, dando a entender que mais vale o gosto de escrever do que o texto escrito, fazendo assim a apologia do prazer e do que é efêmero. Vendo meu fascínio, ele pergunta meu nome e me oferece, caligrafando, a versão chinesa do mesmo.

Posso eu, que sou fã da arte efêmera do Carnaval, não amar a China, cuja flor é o lótus que nasce da água como a nossa vitória-régia? Aquela é cor de maravilha, esta é branca, mas as duas são incrivelmente sensuais.