A biblioteca de Alexandria renasce das cinzas
Betty Milan
Este texto foi publicado com mesmo título na
Folha de S. Paulo; 11/05/2002.
A ABERTURA
A 23 de abril de 2002, Dia Internacional do Livro, deveria ser inaugurada no Egito, com três dias consecutivos de solenidades presenciadas por autoridades do mundo inteiro, a nova Biblioteca de Alexandria. Mas, por causa do conflito no Oriente Médio, a inauguração desse monumento — que foi patrocinado pela Unesco, custou 100 milhões de dólares ao governo egípcio e recebeu grandes doações do Iraque, da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes — foi adiada.
Com isso, adiou-se a tão esperada projeção do Oriente Médio no cenário internacional como um foco irradiador de saber e projetou-se a biblioteca mítica de Alexandria como um símbolo da civilização que a guerra ameaça. Paradoxalmente, quem ganhou foi o livro, que reaparece associado à liberdade e à paz.
O fato é que, no dia 23 de abril, a biblioteca abriu as suas portas para o público. Mais de 2 mil anos depois do incêndio que acabou com a construída por Ptolomeu I, sucessor de Alexandre, o Grande – a instituição que foi o modelo das bibliotecas construídas posteriormente em Roma, no Império Bizantino e na Europa. Tornou-se tão mítica pelo seu acervo quanto por sua desaparição.
A nova Biblioteca de Alexandria se deve ao presidente egípcio Hosni Mubarak que, em 1987, expôs o plano de fazê-la como um centro internacional de pesquisa, cujo projeto seria escolhido por meio de um concurso internacional de arquitetura organizado pela Unesco. Os vencedores foram arquitetos da Noruega, jovens do escritório Snohetta. Além das qualidades estéticas e funcionais da proposta, os noruegueses ganharam pela audácia: um edifício concebido como o símbolo do sol egípcio raiando sobre a terra.
Sete anos depois do concurso, iniciaram-se as obras, que só terminaram em 2001. Data tão significativa quanto o lugar de construção do prédio, que está exatamente onde a antiga biblioteca ficava. Tem treze andares — alguns abaixo do nível do mar — e uma forma circular, como só podia ser para simbolizar o sol. Inclina-se suavemente em direção ao mar. Um muro de granito de 160 metros de diâmetro o circunscreve. Sobre o muro estão as inscrições caligráficas representativas das principais civilizações. Para lembrar que a civilização é indissociável da escrita e do livro? que a espécie humana pode se extinguir, porém a biblioteca, como escreveu Borges, se perpetua “luminosa, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível, secreta?
O peso simbólico do evento resulta, por um lado, da evocação da instituição antiga — espaço onde se desenvolveram todas as práticas que constituíram a nossa relação com o saber. Por outro, resulta da importância geopolítica de Alexandria, ponto de cruzamento do Oriente e do Ocidente, do norte e do sul, cidade marcada por uma longa tradição de cosmopolitismo, como diz Lawrence Durell, logo nas primeiras páginas de Justine, que integra seu Quarteto de Alexandria: “Cinco raças, cinco línguas, uma dúzia de religiões; cinco esquadras cruzando as águas oleosas do seu porto”.
Concebida para receber até sete milhões de documentos, a atual Biblioteca de Alexandria se abre com 400 mil obras e uma coleção inestimável de manuscritos antigos. Recebeu doações de pessoas e instituições de Estados Unidos, França, Espanha, Alemanha, Noruega, Bulgária, Grécia, Marrocos, Egito, Jordânia, Líbano, Rússia, China, Austrália e Brasil. Por sua importância, é a depositária das publicações da Unesco.
Colocará à disposição do usuário livros de diferentes áreas do conhecimento — as ciências exatas, as ciências humanas e as artes. Mas focaliza sobretudo o Egito, a África, o Mundo Árabe e o Mediterrâneo. Abriga uma escola nacional de ciências da informação, um centro de conferências, um planetário e um museu. Last but not least, possibilita o acesso a todas as grandes redes mundiais de informação.
A BIBLIOTECA E O PASSADO
O que levou Mubarak, presidente da Republica Árabe do Egito desde 1981, a empreender tamanha obra, que custou 100 milhões de dólares ao governo de um país onde 20% da população vive abaixo do nível de pobreza e há 40% de analfabetos?
A resposta para essa questão está na história de Alexandria e no significado da sua biblioteca para o Egito e para o mundo. Em 332 a.C., Alexandre, o Grande, toma o Egito e passa a controlar o Mediterrâneo oriental. Precisa de uma cidade que seja um porto, além do ponto de partida para novas conquistas. Chegando em Rakhotis, vilarejo situado num areal que separa o lago Mareotis da terra, a sete estádios da Ilha de Pharos, o rei grita: “É aqui.” Aqui? Surpresa, pois não há nada no local. Nada senão uma baía, fontes de água doce e um acesso fácil para o Nilo.
Sem descer do cavalo, Alexandre joga sobre a areia o seu gibão. Com ele desenha a forma da cidade que deseja. Uma rua reta e larga, templos para os deuses gregos e para a deusa egípcia Ísis, palácios, jardins, dois portos e, na Ilha de Pharos, uma torre com fogo aceso à noite para guiar os navios — o futuro farol de Alexandria, uma das Sete Maravilhas do Mundo.
Alexandre, o Grande não fundou apenas uma metrópole capaz de superar Atenas ou Cartago, formatou o futuro. A Alexandria dos seus sucessores seria uma cidade de abundância, com “fortuna, esporte, poder, céu azul, glória, espetáculos, filósofos, ouro fino, meninos bonitos, templos, (…) museus, vinho, todas as boas coisas que se pode desejar e mulheres…”.
À época da morte de Alexandre, por volta de 323 a.C., já havia na cidade uma sociedade multicultural, formada por corporações de diferentes nacionalidades, governadas por Ptolomeu I. Gregos, romanos, sírios, líbios, sicilianos, etíopes, bactrianos, citas, hindus e persas. A mais importante de todas as corporações — tirante os nativos — era a dos gregos, para os quais a escrita era um símbolo de sabedoria e poder. “Os que sabem ler, veem duas vezes melhor”, escreveu o poeta Menandro, no século IV a.C.
Pelo gosto do fundador da cidade, Alexandria estava destinada a se tornar um grande centro de leitura. Alexandre, o Grande, era um entusiasta do estudo e dos livros. Teve como preceptor o filósofo Aristóteles, para quem colecionar títulos era uma parte indispensável dos trabalhos de um erudito.
Pode-se considerar que o filósofo grego foi o grande inspirador da biblioteca. Não só por ter formado Alexandre, mas por ter tido como aluno e amigo Demetrios, que sugeriu a Ptolomeu I a criação de uma biblioteca que fizesse a sua fama.
As informações de que nós hoje dispomos sobre o lugar exato onde a biblioteca foi construída, o número de manuscritos e a maneira como era administrada são insatisfatórias. Sabe-se que a organização da preciosa coleção foi feita no século III a.C. por Calímaco, um poeta contrário aos que escreviam epopeias à moda antiga e para quem a literatura devia ser concisa e sóbria. Calímaco dispôs os manuscritos em prateleiras, separando-os em oito partes: drama, arte, oratória, poesia lírica, legislação, medicina, história, filosofia e outros. Mandou copiar as obras longas e dividiu-as em seções mais curtas, que ele chamava de livros. Para tornar os rolos de papiro menores e de mais fácil manipulação. Nós a ele devemos um modo corrente de classificar: a catalogação por ordem alfabética.
No século I a.C., a biblioteca não era uma instituição independente, e sim um espaço ligado a um museu. Cresceu até conter cerca de meio milhão de rolos, além de quarenta mil manuscritos no anexo do Templo de Serapis. Porque o projeto dos seus fundadores era de arquivar a totalidade do saber humano. Sob Ptolomeu III, por decreto real, cada navio que parava em Alexandria devia entregar todos os livros para serem copiados. Os originais eram devolvidos aos proprietários e as cópias iam para a biblioteca. A dinastia dos Ptolomeus chegou a pedir emprestados os textos dos grandes dramaturgos gregos, conservados em Atenas.
O acervo realizava o projeto cosmopolita de Alexandre, o Grande — o de misturar as vidas, as nações e os deuses. Três quartos desse acervo foram devotados pelo fogo quando o imperador Júlio César tomou Alexandria e mandou incendiar a esquadra de Aquilas. Por acidente? Ou por descaso do grande César? Do quarto restante do acervo, os árabes se ocuparam em 641. Obedecendo a ordens do califa Omar, o general Amrou entrou na cidade gritando: “Onde estão os livros?”. Na mesma noite, enviou ao califa Omar a seguinte mensagem: “Tomei uma cidade que hoje tem quatro mil palácios, quatro mil termas, quatrocentos teatros, mil e duzentas quitandas e quarenta mil judeus”. As ordens estavam cumpridas. Os livros foram usados para aquecer os banhos públicos.
A destruição da biblioteca mostra que o fundamentalismo é um mal datado do século sexto e autoriza quem se debruça sobre os fatos a se perguntar se acaso não existe uma relação entre a queima da Biblioteca de Alexandria e a do World Trade Center, entre o general incendiário Amrou e os camicases do 11 de setembro.
A BIBLIOTECA E O PRESENTE
Precisamente porque o fanatismo religioso foi uma das causas da destruição da Biblioteca de Alexandria, a construção de outra de grande porte na mesma cidade foi um ato politicamente importante. Projetou Mubarak como um político pacifista, inscrevendo-o na tradição do seu antecessor, Anuar Sadat (1918-1981), que fez a paz com Israel.
Ainda que a nova biblioteca privilegie os estudos do mundo árabe e do mundo mediterrâneo, ela concilia as diferentes nações. Não só porque foi feita com a sua adesão econômica, mas ainda por disponibilizar conhecimento. O ato do presidente do Egito faz pensar no de Alexandre, o Grande, que, ao fundar a cidade, exigiu a coexistência de templos gregos e egípcios.
Pode-se dizer que Mubarak fez o espírito cosmopolita do fundador de Alexandria vigorar, contrariando simultaneamente, por razões justas, o espírito utilitarista do nosso tempo. Apesar das tantas doações, o governo egípcio investiu muito num projeto cultural — e não, por exemplo, na construção civil ou de estradas.
Privilegiando a biblioteca, que é indissociável da civilização, por ser a sua memória, Mubarak quis projetar o mundo árabe no cenário internacional do modo como este precisa se projetar, ou seja, através da sua espiritualidade. Recuperou assim uma tradição fundamental do Oriente, afirmando, com a sua política, que o terrorismo é um desvio e o 11 de setembro não é a expressão maior do povo árabe. A abertura da Biblioteca de Alexandria é um fato que não faz esquecer Bin Laden e as torres crematórias de Nova York, mas enquadra devidamente a sua política, fazendo uma civilização de quatro mil anos raiar novamente.
Para a população pobre e iletrada do Egito, Mubarak indica uma via nova, valorizando o seu passado cosmopolita e espiritual. Por isso, ainda que tenha feito o monumento para se imortalizar como um grande construtor, ele pode ser elogiado. O seu ato é mais justo do que o do presidente François Mitterrand (1916-1996) ao construir a pirâmide do Louvre. Porque o Egito precisa afirmar a sua identidade cultural e a França, não.
Os que contestam a necessidade da Biblioteca de Alexandria, alegando que hoje existem bibliotecas virtuais, precisam levar em conta que a conservação do texto eletrônico é tecnicamente problemática. Ninguém sabe ainda por quanto tempo ele se mantém. Já o livro pode ser conservado durante muitos séculos.
Com a Biblioteca de Alexandria, o mundo mais uma vez conquista uma dimensão ilimitada de esperança. Pois, como escreveu Borges, as estantes da biblioteca contêm todas as combinações possíveis do alfabeto. Noutras palavras, ela contém todo e qualquer livro real ou imaginário. Consequentemente, oferece solução para todo e qualquer problema.
A biblioteca existe desde sempre (ab aeterno) e portanto representa a eternidade futura do mundo. Por isso, ainda que no Dia Internacional do Livro e da inauguração — tão desejada e tão desejável — os opositores do ato de Mubarak pusessem fogo no prédio, a biblioteca renasceria intacta das suas cinzas. Exatamente como a fênix.