A Bahia da Praia do Forte

A Bahia da Praia do Forte

Betty Milan
Este texto apareceu como “Praia do Forte e da ecologia.
Resort
adota o lema usufruir sem destruir”,
Jornal da Tarde
; 4/01/1996.

Talvez ainda existam no Brasil alguns paraísos tropicais. Mas o que diferencia o da Praia do Forte, no litoral norte da Bahia, onde fica o hotel Praia do Forte Resort, é o projeto do seu proprietário: abrir o espaço para turistas preservando o paraíso natural existente, as ruínas históricas e as tradições culturais da vila de pescadores.

Graças a este projeto, é possível deleitar-se com a beleza de uma paisagem que faz incessantemente menção ao passado. É a praia que a gente percorre só vendo o mar e a linha do coqueiral, como se estivesse no século XVI e acabasse de desembarcar na Terra de Santa Cruz. É a súbita aparição, na copa ondulante de um coqueiro, de um pássaro hoje raro. Ou, na beira ensolarada do mar, de uma tartaruga morta que, só por ter vivido um século, pode ser tão imensa.

Na Praia do Forte, está a terra de ponta a ponta, toda a praia formosa a estender os olhos, a que se refere Pero Vaz de Caminha. No espaço privilegiado de uma elevação, de onde se pode observar o movimento das embarcações todas no litoral, encontram-se as ruínas da primeira grande edificação portuguesa no Brasil, o Castelo Garcia d’Ávila. Trata-se de um dos monumentos mais significativos do nosso patrimônio histórico, não só pela antiguidade da construção, mas ainda porque dele emanaram tanto as forças de defesa do Brasil contra os invasores — estrangeiros e piratas — quanto as bandeiras dos desbravadores do Nordeste, os descobridores do rio São Francisco. Não é exagero afirmar que os d’Ávila, cujos domínios se estenderam até os confins do Piauí e do Maranhão, moldaram a fisionomia do Brasil, pois foram eles que trouxeram da Índia as primeiras mudas de coqueiros e aqui introduziram a cultura tão difundida do coco.

Presente na natureza e nas ruínas do castelo, o passado na Praia do Forte também se manifesta na vila de pescadores, cujas ruas seguem o traçado natural dos espaços livres entre os coqueiros e cujas casas geminadas, de janelas e portas coloridas, ficam sempre abertas, como no Brasil de apenas algumas décadas atrás.

A gente aí passeia ouvindo os canários e olhando o céu através de um véu de folhas de flamboyant. Ora vendo o amarelo da azaleia, ora o vermelho vinho do ibisco, a flor com que a nativa tanto enfeita o coco exposto na janela quanto a sua orelha. Impossível não lembrar dos quadros de Gauguin e não pensar o quão razoável o pintor foi retirando-se para o Taiti. Com um pouco de sorte, se pode encontrar na rua um dos grandes mestres da nossa escultura, Doidão, baiano justificadamente famoso no exterior. Os escravos e os garis a que ele dá forma são evocativos dos profetas do Aleijadinho.

E há ainda, nesta vila privilegiada, espaço para o louco e o paralítico, de que os moradores cuidam, porque o progresso ainda não destruiu a ideia de solidariedade. Há lugar para os nativos todos e para os que chegam de fora, que tanto podem se sentar sob a copa de uma gameleira, quanto à mesa de um dos muitos bares, aí tomar alguma batida perfumada, saboreando um acarajé.

Além disso tudo, um hotel, o Praia do Forte Resort, que, valorizando os materiais da terra, combina a arquitetura dos jesuítas com a polinésia e só tem apartamentos com vista para o mar. Nele, o hóspede pode assistir televisão, porém, também redescobrir o prazer da leitura na rede de uma varanda e considerar que não é preciso muito para viver bem.

A Bahia da Praia do Forte é o resultado de uma ideologia correta de apropriação do nosso território, a de um paulista descendente de alemães, que ousou dizer não à pilhagem contínua do país, Klaus Peters, cujo depoimento segue.

Betty Milan: Como surgiu o projeto do hotel e qual foi a concepção que norteou sua implantação?
Klaus Peters: Não houve o projeto do hotel, houve o Projeto Praia do Forte. Eu estava fazendo um empreendimento industrial em Feira de Santana e me ofereceram uma fazenda com 12 quilômetros de praia e 35 quilômetros de rio. Vendo, eu me apaixonei pelo lugar. Quando comprei a fazenda, queria que a beleza fosse preservada e nós iniciamos um projeto de apropriação turística com o lema “Usufruir sem destruir”. De lá para cá, fizemos uma lei de uso do solo extremamente simples, mas muito eficiente.

BM: O que diz a lei?
PETERS: Que você só pode construir dois andares, ou seja, todas as construções devem ficar abaixo da copada do coqueiral.

BM: O coqueiro é a referência de todas as coisas…
PETERS:  Sim. Você não pode derrubar nenhum coqueiro na Praia do Forte, a não ser que tenha autorização expressa. Para cada árvore derrubada, você deve plantar quatro. Para cada 50 metros de área construída, a lei obriga a plantar um coqueiro. Ou seja, quanto mais se construir, mais coqueiro haverá. Além disso, as construções devem ficar recuadas da linha do coqueiral frente ao mar, o telhado tem que ser de palha ou de telha colonial, os materiais de construção todos devem ser naturais da região, ou seja, madeira ou barro, e não telha ou pastilha. É fundamental que o projeto não agrida a paisagem, que se integre nela. O hotel é um exemplo disso. Da praia, você não vê um hotel com 200 apartamentos.

BM: E o que será feito para preservar o Castelo Garcia d’Ávila?
PETERS: Nós o doamos a uma fundação, que se chama Garcia d’Ávila. Ela preserva as ruínas do castelo, aprova as plantas e fiscaliza as construções existentes na Praia do Forte. Nós tomamos a companhia City de São Paulo como exemplo e pusemos restrições no contrato de compra e venda, obrigando herdeiros e sucessores a obedecer ao lema “Usufruir sem destruir”. A Fundação Garcia d’Ávila também é responsável pela ecologia da Praia do Forte como um todo. Temos aqui a maior densidade de postura de tartaruga do Brasil. Todo ano são depositados na praia 65 mil ovos de tartaruga, que os nativos antigamente comiam.

BM: E como foi que eles deixaram de comer?
PETERS:  Primeiro, removemos os ovos para um local cercado e com as mesmas condições de umidade da areia; 55 dias depois da eclosão dos ovos, as tartaruguinhas recém-nascidas eram classificadas e soltas no mar. Hoje em dia, ninguém mais mexe nos ovos.

BM: Mas por quê?
PETERS: O turismo criou pleno emprego na Praia do Forte, e o nativo pode se dar ao luxo de comprar ovos no supermercado. Já não vai à mata cortar lenha para cozinhar, porque tem gás em casa, não vai à caça, porque tem a possibilidade de comprar frango ou carne no açougue. O projeto da Praia do Forte mostra que, através do turismo, você pode proteger o ambiente. Nós temos também a Mata Atlântica — mata primária, pois nunca foi cortada — e a lagoa em frente ao hotel, uma reserva de pássaros com 183 espécies diferentes já classificadas. Além disso, existem os manguesais do rio e uma reserva de dunas. Tudo pode ser visitado pelo turista na companhia dos nossos biólogos.

BM: E a vila de pescadores?
PETERS: A vila estava dentro da propriedade que eu comprei. Para protegê-la, obrigamos a prefeitura a fazer um contrato de comodato com os moradores, que assim podem usar a propriedade, passar aos seus herdeiros e sucessores, porém não têm o direito de vendê-la. Fizemos isso para que não ocorresse na Praia do Forte o que infelizmente ocorre pelo Brasil afora. O nativo vende por um tostão a sua propriedade ao primeiro turista que aparece. O turista desaloja o nativo e, com isso, descaracteriza a vila que daí se transforma numa vila urbana de quarta ou quinta categoria.

BM: O que levou você a se empenhar tanto no projeto da Praia do Forte, que se transformou numa verdadeira causa?
PETERS: Sempre gostei de mar. Aos 20 anos, comprei a minha primeira propriedade em São Sebastião, que, na época, era uma pequena cidade colonial autêntica e uma cidade viva, ao contrário de Ubatuba e Parati, que eram cidades mortas, tinham sido completamente abandonadas. São Sebastião era uma beleza, todas as casas caiadinhas, as portas pintadas de azul, bonita mesmo. Eu então fui ao Patrimônio Histórico e disse que era preciso tombar a cidade, expliquei que um dia o turista iria lá só pela arquitetura colonial, como hoje vai a Parati, que não tem praia, não tem nada além da arquitetura. Não fui ouvido. Acabaram derrubando casas coloniais e o governo do Estado construiu um fórum romano em frente da cadeia mais linda do Brasil. Foram cometendo um crime atrás do outro e a coisa culminou na construção de um terminal da Petrobrás no centro de São Sebastião. Concomitantemente, tiveram que fazer o oleoduto, um crime ecológico inacreditável. Entraram com aquelas máquinas pela costa afora. Quando começaram a estrada que vai de São Sebastião a Bertioga, fui à Secretaria de Obras Públicas, ao DER (Departamento de Estradas de Rodagem) e disse que não deviam abrir a estrada sem uma lei de regulamentação do uso do solo e de desapropriação de áreas públicas, para que a estrada não passasse no meio de vilarejos. Não adiantou. Com a abertura da Litorânea, enveredaram pela Mata Atlântica adentro, derrubando sem critério. São crimes cometidos por gente de formação universitária, e é isso que é terrível no Brasil. O criminoso não é o analfabeto, é o universitário. O projeto da Praia do Forte surgiu por causa do meu desapontamento com o governo brasileiro e com o que aconteceu em São Sebastião.