A aventura de Gauguin
Betty Milan
Este texto apareceu como “A aventura de Paul Gauguin e
o crime de ser ele mesmo”, Folha de S. Paulo, 26/05/2003
“Como você vê estas árvores? Amarelas? Pois então ponha no quadro o amarelo mais forte da sua paleta. A sombra você vê como? Ela está mais para o azul? Pinte-a com o azul do alto-mar, puro. E as folhas? Vermelhas? Ponha um vermelhão.” A isso, Gauguin acrescenta que o artista deve pintar o que sente, e não o que vê, subvertendo as convenções acadêmicas. Tudo menos a pintura fotográfica, a reprodução fiel da realidade.
A Emile Schuffenecker, um dos seus discípulos, ele diz: “A arte é uma abstração. Procure extraí-la da natureza, sonhando com a natureza. Pense sobretudo na criação que há de resultar. Você só chega a Deus se você criar”.
Nesse caminho, ele concebeu o sintetismo, que preconiza o uso das cores puras e os contornos bem delineados. Opôs-se aos academicistas e se distanciou dos impressionistas, pelos quais foi reconhecido como um artista revolucionário. Pissarro e Degas o convidaram a se juntar às exposições do grupo.
A aventura de Gauguin foi a de ser ele mesmo, seguir a própria via. Cometeu esse crime e pagou por isso. Apesar de já consagrado, em 1886, teve que pedir emprestado o dinheiro de uma passagem de trem de Paris a Pont-Aven, vilarejo do interior da Bretanha que foi a capital mundial da arte durante três décadas. Uma capital que nasceu com a chegada de Robert Wylie, em 1864, e cresceu com a de outros americanos — além de pintores europeus, que lá se instalaram deixando-se seduzir pela beleza pitoresca do burgo, a amenidade da luz e a natureza selvagem dos arredores.
Nessa cidadezinha, Gauguin viveu sua aventura antes de ir para o Taiti. Aí encontrou Émile Bernard — erroneamente considerado o fundador do sintetismo —, Charles Laval, Schuffenecker, Puigaudeau, Delavallée, Moret, Jourdan, Filiger, Chamaillard, Meyer de Haan, os seus discípulos. O movimento que surgiu teve imensa influência. Depois de Pont-Aven, já não se pintava da mesma maneira. O sintetismo antecipou o fovismo, anunciou o expressionismo, abriu a via para a abstração e prefigurou a arte pop.
Pode-se entender por que as comemorações do centenário de Gauguin em Paris começaram com a exposição “A aventura de Pont-Aven” no Museu de Luxemburgo, que Gauguin chamou de prostíbulo quando seus quadros foram recusados. Nem “reparação simbólica”, como diz o catálogo, nem “vingança póstuma”. Antes, um convite à meditação sobre a força da arte verdadeira — a que reivindica o direito à expressão da subjetividade e por isso inova e permanece. Uma arte virulentamente moderna e eterna. De quem não apostou no mercado. Ousou o Tempo.