A antropofagia e suas dentições
Encontro Internacional de Antropofagia, 2005
Eu me formei com três antropófagos. Um era francês: Lacan. O segundo, brasileiríssimo, nascido em São Luís do Maranhão: Joãozinho Trinta. O terceiro é paulista e é da sua dentição que eu vou falar, da manifestação antropofágica que mais me marcou nos cinco últimos anos: a do Teatro Oficina de Os Sertões.
Não vou falar sobre, vou simplesmente evocar. Voltar ao Oficina, à Terra, a primeira parte de uma peça que já dura trinta horas.
Você ouve um tambor. O espetáculo vai começar. As portas do teatro se abrem. São azuis. Oficina Paraíso, Teatro Oficina. Os atores de branco vêm te buscar. Dançando e cantando: “Meu cavalo tá pesado, tem vontade de voar”. Você dança também. Deixa que eles passem a mão no teu corpo. Você se deixa limpar.
O sorriso do Marcelo Drummond é light. Resistiu e ganhou todas. Como o Zé, com o Zé. Eles vêm te buscar e você entra no teatro, já transformado numa personagem, já tomado pelo drama de Canudos.
Marcelo ensina a respirar. E o público zen respira e vê que o chão de cimento está coberto de areia. Só com isso, você já se transporta para o sertão. Com Marcelo, você continua a fazer os gestos e a produzir sons. Barulho de beijo, estalar de língua. Mostra a língua, meu bem, mostra tudo o que é humano e a burguesia nunca ousaria mostrar. Você entra na peça e diz hum hum hum. Diz Ó Ó Ó. Depois, diz Ó Qui Ó Qui Ó Qui. E ouve Aqui ó! Dê logo a sua banana. Para quem? Principalmente para o Silvio, claro. O Silvio Santos(1).
Mas isso que eu estou vendo o que é? Peça de teatro? Ópera? Que pergunta! Renuncia logo à convenção e deixa a poesia estar, o ritual acontecer. Bate tambor. Ora, Picasso pintava como quem esculpia e esculpia como quem pintava. Com o Marcelo, você repete Hop Hop Hop. Até ele entrar no papel do narrador e dizer: “Os Sertões foram escritos por Euclides da Cunha nos raros intervalos de folga… Irritam-me as meias-verdades que não passam de mentiras… Irritam-me os autores que citam os fatos, mas desfiguram a alma… Eu quero ser bárbaro entre os bárbaros… Antigo entre os antigos”. Com isso, expressa e assume a estética do Oficina, que quer a alma do texto e ganha, porque faz o coração bater.
A peça propriamente dita começa, contando que, no início, ia Euclides se deslocando, descobrindo a terra brasileira, o Planalto Central do Brasil, que desce nos litorais do sul “em escarpas inteiriças, altas e abruptas”. Como o narrador, os atores se deslocam e você viaja até ver um casal que dança ao som de um tambor. A que veio? Só depois você entende. Como sempre, nas peças do Zé, na vida, na psicanálise. Entende que o casal simboliza o drama pessoal de Euclides e do Conselheiro, abandonados pelas respectivas esposas.
Daí, como a terra do sertão não existe sem o rio, o rio entra em cena e diz: “Me chamo São Francisco”. Porque, na dramaturgia do Zé, como nos livros de Monteiro Lobato, tudo o que existe fala, tem alma. Fala a terra, fala o rio, falam o sabugo e o rinoceronte.
“Nenhuma natureza se afigura tão afeiçoada à vida como a brasileira”, diz um dos atores, acrescentando que isso “justifica todos os exageros deste país”. E você viaja para a bacia do São Francisco, até atingir o Rio Vaza-Barris. Viaja olhando os panos tão longos quanto o corredor do teatro, os panos que ondulam como o rio. Verde, amarelo, vermelho.
Você ouve a língua suntuosa de Euclides. Possível que alguém tenha ousado escrever “ciclópicos coliseus”? E você redescobre, graças ao Oficina, que o tesouro da língua é o maior tesouro. Graças a este Teatro Brasileiro da Inclusão, o TBI, onde as crianças do Bixiga rebolam, dizendo em alto e bom som as palavras de Euclides da Cunha. A universidade baniu a literatura, o teatro a incluiu e vai educar. Ó Qui Ó Qui Ó Qui. Banana, meu bem. Oh yes, nós temos bananas pra dar e vender. Temos uma farândola que nem o Fellini do Oito e Meio ousou imaginar. Aqui em Tão Paulo, no sertão do teatro, onde os atores e as crianças vão dizendo: “amplitudes dos Gerais, maciço continental…”. Ó qui para a língua pobre da internet.
E você chega no Vaza-Barris, à margem do qual se encontra Belo Monte. Você vê no palco do alto, no da esquerda, Euclides da Cunha surgir, Marcelo-Euclides reaparece de terno e chapéu preto, rosto pintado de branco. Porque era preciso ser branco para falar da terra e do mestiço como Euclides falou. Era preciso ser formado como um doutor para dizer: “Nenhum pioneiro da ciência suportou o sertão – sempre evitado, até hoje desconhecido…”.
O quadro que se segue (porque a peça só é teatro sendo pintura) é o de Euclides na frente do Conselheiro. Face a face. Daí por diante, os dois vão se espelhar. Nesse espelhamento, o Conselheiro pede o fim da maldição de que é vítima o sertão. Pede visualizando Monte Santo. E o tema então é o Vaza-Barris, que também fala, claro. Fala a terra, fala o rio, como as árvores e as flores falarão. Todos são personagens, como todos os atores são narradores. Para que o texto de Os Sertões seja apropriado e você ouça que ali reinam “calmarias pesadas, dias causticantes”. Para a deglutição das frases e das palavras.
Euclides percorre as cercanias de Canudos. É 1897. E o senador Eduardo Suplicy, que está entre os espectadores, ouve e lê atentamente o livro. Subitamente, aparece o primeiro personagem da tragédia: um soldado morto. Daí são dois Euclides da Cunha que você vê em cena. Porque, se o escritor não se desdobrasse, ele não escreveria. Há sempre dois, um que vive e outro que observa.
O morto, os cavalos mortos “como espécimes empalhados de museus”, como animais fantásticos sobre um chão onde “cada partícula de areia irradia a combustão da terra” e Antônio Conselheiro pisa, vestido exatamente como Euclides da Cunha. Fala do mal de não ser amado, da dor de corno que o fez deixar a “civilização”. Vários atores vão encarnar o Conselheiro e contar a história do seu renascimento no sertão, de cajado e lençol branco. Você ouve repetidamente a palavra caatinga e descobre como é linda. A palavra feito nota musical. Euclides se aproxima do Conselheiro, enquanto Zé Celso, que também é escritor, olha. Você olha o Zé, que olha Euclides (Marcelo), que olha o Conselheiro. Todos no corredor.
Globe Theater lá na Inglaterra. Aqui é Teatro do Corredor. Igualmente maravilhoso. Nele, você vê o céu de São Paulo enquanto os atores vão virando árvores e celebrando as nossas bromélias. Zé Celso, como Joãozinho Trinta, é um educador. O que ele ensina é o Brasil, sem nunca ser nacionalista. Vem que tem, e ele inclui todas as músicas no ato de romper com as convenções, fazer bem pouco de Hegel e fazer Euclides dizer – para todos ouvirem – que ele nunca lamentou tanto a falta de uma formação prática, formação que o ensinamento acadêmico não deu e não dá.
Um teatro sacrílego que é sagrado e é alegre, onde a valsa toca no sertão. Quem disse que não? Hegel? Que diz para Euclides: “O senhor não classificou esta categoria geográfica. Só é real o que é racional e vice-versa”. “Os homens têm que abrir mão do que não se encontra nas categorias racionais. Sei bem que vocês pisam nessa terra, só que ela não existe”. Ora Hegel! “Sou promíscuo e quero ser barbaramente estéril, maravilhosamente exuberante”, responde o sertão.
E a peça culmina. Você assiste ao rito do homem nu, o índio que apaga o fogo com o próprio corpo, as brasas com a sola dos pés. Medo. Será que este teatro vai pegar fogo? Pega com uma foda ao som de um sinuoso violino.
O texto continua e a Terra é simbolizada por uma mulher com quem Euclides transa. Os atores começam a apunhalar o chão. Referência ao drama da terra na modernidade, a de Michel Serres, o filósofo francês. Mais internacional do que o nosso Zé não existe. Do que nós, brasileiros, que comemos alegremente todas as representações.
A Terra é apunhalada e o Conselheiro reaparece? Aparece na porta, encarnado por Zé Celso, vestido de azul, como um anjo, perguntando: “As tuas mãos? Onde estão as tuas mãos?”. Pergunta e lambuza as próprias no “esperma do líquen da terra”, um líquido branco oferecido por um índio nu.
Zé Conselheiro sugere que você, espectador, não seja um Pôncio Pilatos. Lambuze em vez de lavar as mãos. Participe para evitar o massacre. Depois, seguido pelos quarenta atores, atravessa o teatro-corredor e desaparece nos bastidores. Você fica com a imagem de um ator que leva uma placa onde se lê: RUA CANUDOS. O silêncio é sagrado. Sacraliza até o barulho do trânsito, a rua Jaceguai e São Paulo, Tão Paulo, Tão.
Entra em cena O homem para ensinar que o “brasileiro típico” é um mito, que a diferença é o nosso tesouro comum. A peça retoma a questão da identidade e nos diz quem somos nós, que não cessamos de nos misturar, nós que só falamos a mesma língua, fazendo-a variar interminavelmente, deixando que ela se contamine pelas outras. Gilberto Freyre, que fundou sua sociologia na miscigenação, teria gostado.
Com A terra, o Oficina fundou o TBI, o Teatro Brasileiro da Inclusão, introduzindo as crianças do Bixiga na peça. O resultado dessa experiência iniciática foi o re-nascimento do Oficina em O homem, segunda parte de Os Sertões, para um trabalho de ator surpreendente. Com as crianças, os mais velhos também se formaram. Além de atrizes e atores consagrados, como Luciana Domschke, Patricia Aguille, Marcelo Drummond, Ricardo Bittencourt, Fransérgio Araújo, Aury Porto, há vários outros cujo desempenho arrebata. São capazes de encarnar com convicção o próprio personagem, capazes de se desnudar em público, como só o ator se desnuda. Por saber que a palavra vergonha não faz sentido no teatro e que, para ser bom, o ator precisa se tornar avergonhado como o artista se torna inocente.
A contribuição das crianças do Bixiga foi decisiva para que os mais velhos se aprimorassem. Prova de que a inclusão é o melhor dos recursos. Como a terra é o maior dos bens. Para o sertanejo e para os sem-terra. Para o Oficina, a cuja história o espetáculo continuamente nos remete, convocando a tomar parte no drama de um espaço cultural ameaçado de extinção desde que surgiu.
O Homem mostra, mais ainda do que A Terra, que Canudos é aqui. Os sem-terra estão no campo, mas também na rua Jaceguai, no Uzyna Uzona, que é uma usina de formação e de paz.
Depois de O Homem, o Oficina apresenta O Transhomem, onde o transhumano Zé, no papel do Conselheiro, vive sua saga indiferente aos perigos, alimentando-se mal, dormindo à beira dos caminhos… Porque compreende melhor a vida pelo “incompreensível dos milagres”.
Com os outros atores, nós vamos para a Vila de Itapicuru de Cima. Depois, para o Rio de Janeiro, para a rua mítica do Ouvidor, onde se anuncia que, no sertão do norte, apareceu um homem que exerce grande influência sobre as massas populares. É Antonio Conselheiro, que, pouco depois, é preso e é solto e penetra sertão adentro. Ouvimos cantar que o sertão vai virar praia e a praia virar sertão. Evoé, Glauber.
Entra em cena a igreja de mitra: “– Aqui, em nossa freguesia, anda Antonio Conselheiro enfraquecendo a autoridade. Proibimos o nosso rebanho de ouvir a pregação. Só quem é da igreja pode doutrinar”. O espectador vê, ouvindo atentamente a língua, que é a personagem principal da peça: “Itapicuru, eu sempre volto a tu…”.
A princesa imperial sanciona a Lei Áurea. É 1888. Um ano e a monarquia está extinta. O elenco canta “Liberdade, abre as asas sobre nós”. Renée Gumiel recita Augusto Comte: “Amor por princípio, ordem por base e progresso por fim”. Recita em francês, claro, porque foi com o espírito da imitação, o espírito papagaio, que a República surgiu.
Ato contínuo, ergue-se o arraial fortificado. Você olha para o céu de São Paulo, que o teto aberto do teatro deixa ver, e enxerga as estrelas do sertão. Quer ver mais, porém o vigário entra em cena: “Irmão, a igreja não permite que pregueis”. Ele entra condenando o Conselheiro e prenunciando o auto-da-fé, a guerra, a vinda dos homens armados para matar os rebeldes.
Zé-Conselheiro dá a mão para a menina do Bixiga, uma das nossas futuras grandes atrizes. Você percebe que está presenciando um acontecimento novo e decisivo – o de um teatro que foi mil vezes excomungado, mas veio para ficar. Porque fundou o Teatro Brasileiro da Inclusão e agora tem um corpo de atores que já não se concebe sem ele. Com O Transhomem, o Oficina se tornou independente do seu diretor, transcendeu o Zé, como o Zé queria.
Antes de começar a matança dos inocentes, uma procissão gozosa no teatro ao som de um expressivo violino. Na saída, você lê no programa que se trata de uma Ópera de Carnaval e lembra do outro grande antropófago contemporâneo, Joãozinho Trinta, que sempre viu no Carnaval uma Ópera de Rua.
Terminada a procissão, os rebeldes se instalam em Belo Monte e as casas-cabanas se erguem. Trata-se, segundo o texto da peça, da primeira favela do país. Uma favela de amor e paz, onde os seios de Patrícia Aguille surgem como faróis e Luciana Domschke se transforma numa vagina vulcânica. Evoé, Luciana, evoé, Pompeia. O teatro vibra com estes corpos tão ousados quanto a língua portuguesa do Brasil. Um oásis no Evangelho Trágico do Conselheiro.
Segue-se outro rito de celebração. Uma esteira se desenrola no chão do teatro para oferecer ao público um banquete de frutas brasileiras. Momento maravilhoso de devoração antes do sítio de Canudos e da destruição da “seita maligna”.
Depois da Terra, do Homem, do Transhomem, vem A Luta, que Zé Celso dedica a Oswald. Nesta parte da epopeia, ele alcança a meca da grande arte, que se materializa sucessivamente nas cenas mais poéticas, porque na sua dramaturgia o que interessa não é a co-municação mas a cu-municação, ou seja, o verbo que o corpo traga e vira música, vira canto da sereia. Porque não é a significação que importa, mas o sentido. Não é o conhecimento, mas o cu-nhecimento, o saber que passa pelo corpo, a sabedoria. Na tradição da nossa cultura popular, Zé Celso, o Zé, é um budista brasileiro, e a sua peça evoca um dos ensinamentos do Buda, o de que o conhecimento se toma emprestado dos outros enquanto a sabedoria é interior, é sinônimo de experiência e não de informação.
O elenco todo é bom, além de bonito. Formados no credo oswaldiano do pensamento ávido da totalidade, do humor e da vertigem, os atores do Oficina são únicos. Estão preparados para fazer o público entender que as tropas, sejam elas quais forem, rumam sempre para a morte. Com eles, o diretor conseguiu fazer da história real de Canudos uma história metafórica e universal.
Prova disso é o sucesso de Os Sertões na Alemanha. Primeiro, em Recklinghause, que fica no coração da indústria militar alemã e produziu as armas utilizadas na Guerra de Canudos. Nesse lugar, o produtor alemão reconstruiu o espaço do Oficina, tal como ele foi concebido por Lina Bo Bardi. Depois de Recklinghause, Krieg im Sertão, foi para Berlim, onde o antropófago Zé foi visto como o diretor lendário de um teatro-mensageiro de que o mundo precisa. Como o mentor de um movimento zévilizatório que exalta a criatividade e quer a inclusão de todo Zé – pois todos nós somos criativos. Um movimento que não tem medo do nu, mas nunca o explora, pois sabe que o nu é sagrado. Que quer a palavra plena, inclusiva, zévilizatória. Comprometida com a verdade e a paz.
Evoé, Zé.
Viva a cultura da paz e da inclusão.
Viva a zévilização.
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Encontro Internacional de Antropofagia (EIA), Sesc Pompeia, São Paulo (SP), dezembro de 2005.
(1) Referência ao empresário e comunicador Silvio Santos, dono do terreno onde fica o Teatro Oficina, situado na rua Jaceguai, cujo edifício ele pretendia demolir para a construção de um projeto comercial.